Proibição da escravatura e do trabalho forçado análise do caso siliadin v. França

09/01/2013. Enviado por

O presente estudo visa, primeiramente, analisar a evolução histórica do trabalho escravo, como e quando ele deixou de se tornar uma prática legal para para maioria dos países e passou a ser visto como afronta a dignidade humana.

INTRODUÇÃO

A escravidão sempre existiu na história da humanidade e atualmente ganhou apenas uma nova roupagem.

O presente estudo visa, primeiramente, analisar a evolução histórica do trabalho escravo, como e quando ele deixou de se tornar uma prática legal para maioria dos países e passou a ser visto como afronta a dignidade humana.

Posteriormente, objetiva demonstrar quais são as características da escravidão moderna, as formas utilizadas pelos exploradores para aliciarem suas vítimas, bem como o conteúdo trazido nas Convenções; as quais possuem o intuito de fazer com que os países que as ratificaram, combatam essa prática criminosa.

Após compreendido o que é a escravidão atualmente e a normas que a combatem, objetivará analisar a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no caso Siliadin v. França. Ocasião em que será discutido se o Governo francês falhou quanto a sua obrigação positiva, nos termos do artigo 4º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Por fim, verificará como as legislações do Brasil e Portugal punem essa prática criminosa, e, se essa punição tem sido eficaz para prevenção e erradicação do problema.

 

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO ESCRAVO
A submissão de pessoas e grupos por seus semelhantes sempre ocorreu na história da humanidade e perdura até os dias de hoje. Milhares de pessoas em todo mundo são reduzidas a condição humilhante de escravos, quando privadas de sua liberdade e sujeitas a todo tipo de violência e humilhação, por aqueles que não possuem mais sua propriedade legal.

 

1.1. O Trabalho na Antiguidade

Primeiramente o trabalho não visava o lucro, mas sim, a subsistência do ser humano. A natureza fornecia tudo o que lhe era preciso[1].

Todavia, posteriormente, ele começa a almejar benefícios e facilidades para sua sobrevivência. Desta feita, a agricultura e a criação de animais ganham espaço, igualmente, como outros trabalhos que não existiam anteriormente[2].

Ocorre que, a produção obtida com os supramencionados trabalhos passa a ser excedente e, oportunamente a utilizam como moeda de troca com outras tribos e sociedades. Assim, as descobertas de novos objetos, os permitem alcançarem novas possibilidades[3].

Ademais, também passam a desagregar as relações comunitárias absolutas, originando guerras entre os povos. Aqueles que eram derrotados tornavam-se prisioneiros da sociedade vencedora, e esta os submetia à antropofagia. Contudo, com o passar do tempo, perceberam as benesses que os prisioneiros poderiam proporcionar se fossem forçados a trabalhar em seus campos; momento este, em que nasce a figura do escravo[4].

Destarte, entende-se, que a escravidão advinha da relação de forças entre vencedor e vencido, e, fez surgir a figura pré-jurídica da obrigação de servir. Porém, sua natureza não foi sempre punitiva, ao perceberem que poderia trazer progresso aos povos, lhe foi atribuído caráter econômico[5].

Juridicamente, o escravo era considerado como coisa e podia ser objeto de relação patrimonial, ou seja, homens livres poderiam ter sua propriedade ou posse, comprá-lo, cedê-lo em usufruto e até matá-lo, visto que neste caso, apenas estariam deteriorando ou destruindo algo valorizado economicamente[6].

Cabe salientar, que escravos não eram somente aqueles que perdiam a guerra, mas, também, todo o sujeito, independente da posição que ocupasse na sociedade, que não arcasse com suas dívidas. Havia, ainda, a escravidão como forma de punição pela prática de determinados delitos[7].

 

1.2. Grécia

Em Atenas a escravidão se dava por dívida, uma vez que com o desenvolvimento econômico, os trabalhadores braçais (thetas) foram marginalizados e impossibilitados de arcar com as obrigações que inicialmente contraíram para escapar da miséria. Assim, eram tornados parte do patrimônio do credor quando este os escravizava[8].

No que concerne a Esparta, a escravidão ocorria por guerra. Tornavam-se escravos os que fossem capturados (hilotas) nos territórios já conquistados. Pela teoria paternalista, como a terra, também não podiam ser propriedades dos particulares, mas apenas do Governo [9].

1.3. Roma

A escravidão também se fez presente em Roma, mas seus escravos eram diferenciados dos de outras civilizações, pois faziam parte da estrutura social, ou seja, ocupavam quase a mesma posição que a esposa e os filhos de um pai de família[10].

Em solo Itálico a escravidão ocorreu também por dívidas, o devedor abdicava de sua liberdade para o cumprimento da obrigação contraída. Contudo, no século IV a.C. foi proibido que o cidadão romano fosse reduzido à condição análoga de escravo, o que levou a sociedade a escravizar estrangeiros para a agricultura e todo tipo de trabalho[11].

Ocorre que, benefícios foram dados aos escravos com o passar do tempo, como o “pecculium”, o qual lhes permitia adquirir outros escravos que haviam chegado á vila, ou, ainda, a sua própria liberdade dependendo da elevada soma que tinha sido arrecada pela função exercida para seu dono. Este, por sua vez, se o quisesse, poderia libertá-lo apenas como ato de benevolência, sem precisar receber qualquer soma em troca[12].

Salienta-se, que o direito a liberdade foi conhecido como manumissão, o qual representava um avanço, mas não os tornava completamente livres[13]. Todavia, mesmo assim, contribuiu para um abrandamento e redução da escravidão nos períodos posteriores[14].

 

1.4. Idade Média

Inicia-se com a queda de Constantinopla e substitui o sistema escravista pela servidão no feudalismo. O senhor feudal tinha direito ao fruto do trabalho de seus servos, mas ao mesmo tempo, permitia que eles usufruíssem de suas terras, do resultado do seu próprio trabalho, e, ainda, os protegia no caso de guerra[15].

Tinham como obrigação o pagamento de imposto (corvéia) e uma jornada de trabalho de três dias. Assim, nota-se, que suas condições eram extremamente melhores que as dos escravos greco-romanos. Melhora que ocorreu, pelos princípios cristãos atribuídos na época[16].

 

1.5. Revolução Industrial

A Revolução Industrial teve origem na Inglaterra, no século XVIII, mas posteriormente ocorre, também, em outros países.

Ela substituiu parcialmente a mão de obra humana pelas máquinas e causou o êxodo rural por diminuir as oportunidades de trabalho no campo. Consequentemente, não conseguiu empregar a todos os que precisam de trabalho, gerando o desemprego, bem como outros problemas sociais e ambientais[17].

O capitalismo comercial era uma nova lógica industrial avessa ao escravismo. Por isso, a Inglaterra não poupou esforço para que a escravidão fosse substituída pelo trabalho assalariado, promulgando a Lei Aberdeen em 1845, a qual a permitia prender qualquer navio negreiro que fosse pego transportando escravos ao longo do oceano. Desta feita, muitos países que ainda se utilizavam da escravidão viram-se obrigados a aboli-la[18].

Apesar de não haver incidência significante de trabalho escravo nesse período pelo acima exposto, é inegável que as condições dos trabalhadores tornaram-se degradantes após alguns anos. O que fez surgir no século XIX, o direito do trabalho[19].

Nota-se, assim, que anteriormente a revolução industrial, o trabalho foi basicamente servil, escravo, realizado em ambiente patriarcal. Não havia liberdade, e o direito só atuava em ambiente de igualdade.

 

2. A ESCRAVIDÃO MODERNA

Não obstante a escravidão tenha sido abolida a mais de 160 anos na maioria dos países, faz-se imperioso destacar, que ela ainda persiste na atualidade[20].

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 12 milhões de pessoas no mundo vivem atualmente em condição de escravos, sendo certo, que a maioria das vítimas são mulheres[21]. Em 2001, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa verificou que mais de 4 milhões de mulheres eram vendidas por ano em todo o mundo[22].

Na escravidão moderna as pessoas ainda são tratadas como objetos, humilhadas, abusadas e forçadas a trabalhar por meio de ameaça física ou mental, com pouca ou nenhuma remuneração financeira. A liberdade é restringida de várias formas, a mais comum, o confisco de seus passaportes[23].

Uma parte das vítimas é ludibriada pelo sonho de um futuro melhor e voluntariamente imigram dos países subdesenvolvidos para Europa e Estados Unidos. Outra porcentagem é enganada por falsos agentes sobre uma possível vantagem econômica que iriam obter ao se mudarem. Há, também, promessas feitas a famílias menos favorecidas, as quais acreditam que se entregarem seus filhos menores, estarão dando a eles oportunidade de estudo e emprego para que futuramente os ajudem[24].

Assim, percebe-se, que em sua maioria são imigrantes ilegais que não dominam a língua do país para onde forem levados, e, aterrorizados pela situação que se encontram, são submetidos a todo tipo de exploração, como por exemplo, a sexual, o trabalho doméstico, agrícola, no setor de construção, no setor de hotelaria, entre outros[25].

Segundo a Organização Internacional do Trabalho e a organização não governamental inglesa “Anti-Slavery International”, o escravismo na Inglaterra ocorre com a utilização irregular de mão de obra de imigrantes europeus, asiáticos, africanos e latino-americanos. Os europeus costumam vir dos países do Leste, como Polônia e Romênia[26].

Os referidos trabalhadores geralmente têm seus documentos retidos, passam a contrair dívidas com seus exploradores pela sua hipossuficiência econômica, e, assim, são forçados a permanecer em seus empregos clandestinos, os quais, habitualmente, são no setor agrícola, no trabalho doméstico, no setor da construção cível e no setor de alimentação e hotelaria[27].

Em Portugal, até hoje cidadãos romenos são recrutados para serem explorados na área da produção agrícola, como também os trabalhadores de Angola, Brasil, São Tomé, Príncipe e de antigas Repúblicas Soviéticas, como Armênia, Geórgia, entre outras. O mesmo ocorre na Espanha, mas a exploração se dá, na maioria das vezes, na colheita de uvas viníferas[28].

No que concerne à Irlanda, organizações governamentais também denunciaram casos de trabalhadores escravizados, não obstante o número seja menos expressivo que em outros países, pois apenas 8% (oito por cento) da mão de obra regularmente empregada é formada por não nacionais, conforme o levantamento realizado até o ano de 2005[29].

Na República Tcheca o escravismo igualmente está relacionado à migração, os exploradores geralmente os empregam nos setores da indústria da construção, indústria têxtil, na agricultura e no setor de serviços. Costumam migrar de antigas repúblicas soviéticas, como Bielorrúsia, Cazaquistão, Chechênia, Geórgia e Moldávia; bem como da Ásia, especialmente da China, Mongólia e Vietnã[30].

Há, ainda, confirmação de exploração de trabalho escravo na Alemanha, França, Holanda, Itália, Polônia, Rússia, Argentina, Peru, Bolívia, Brasil, Guatemala, Honduras, Haiti, México, Nigéria, Índia, China, Tailândia, Austrália, entre outros[31].

 

3. OS DIREITOS HUMANOS

A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, proibiram a escravidão ao estabelecerem nos artigos IV e 8º, respectivamente, que ninguém será mantido em escravidão ou servidão e, que a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. Com a diferença, que o art. 8º também previu a proibição da execução de trabalhos forçados ou obrigatórios[32].

Além disso, no Direito Internacional dos Direitos Humanos, a proibição do trabalho escravo ganhou caráter absoluto e não comporta exceções, ou seja, jamais poderão ser invocadas circunstâncias excepcionais, como ameaça, estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, no intuito de justificá-lo (artigos 4º e 15º da Convenção Europeia de Direitos do Homem)[33].

Imperioso destacar, que não só a Convenção Europeia de Direitos do Homem proíbe a escravidão, mas sim, todas as Convenções do sistema regional, como a Convenção America e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos[34].

Outrossim, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu art. 6º, ainda, reconheceu que toda pessoa tem o direito de escolher o trabalho que irá exercer ou aceitar o que lhe foi proposto, sendo certo, que os Estados estão obrigados a salvaguardar esse direito através da implementação das medidas necessárias[35].

Contra o combate da prática vertente, há, também, alguns tratados da Organização das Nações Unidas, como a Convenção sobre Escravidão de 1926, o Protocolo para abolição da Escravidão de 1956, a Convenção para supressão do tráfico de pessoas e da exploração da prostituição de outros de 1949; o Protocolo para prevenção, supressão e punição do tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças, complementar à Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional, dentre outros[36].

Por fim, somam-se as normas específicas adotadas no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, destacando-se a Convenção n. 29, de 1930, sobre trabalho escravo e a Convenção n. 105, de 1957, que dispõe sobre a abolição desta espécie de trabalho[37].

A Organização Internacional do Trabalho também expediu em 1998 uma declaração que exigia dos Estados-membros o cumprimento das determinações decorrentes das convenções, mesmo que não as tivessem ratificado[38].

Ocorre que, a França mesmo ratificando todas as Convenções sobre direitos humanos e proibição da escravatura, falhou quanto ao cumprimento da sua obrigação positiva, ao não dispor dos meios necessários para salvaguardar os direitos daqueles que viessem a sofrer com o seu desrespeito.

Pois, até o ano 2003, sua legislação que deveria visar à proteção da vítima, a prevenção e punição da prática criminosa, caso essa viesse a ocorrer, era vaga, não previa as modalidades de escravidão ou servidão, dava margem para várias interpretações e posicionamentos, bem como não qualificava os crimes se cometidos contras menores.

Assim, acarretava decisões controvertidas, anulações, jurisprudências desiguais e violação da proteção dos direitos inerentes da pessoa humana, conforme se verifica no caso Siliadin.

 

4. CASO SILIADIN V. FRANÇA

Siwa Akofa Siliadin trata-se de uma nacional da República do Togo, que recorreu à segunda seção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra o Estado Francês, pois, segundo ela, ele havia falhado quanto ao cumprimento da sua obrigação positiva, nos termos dos artigos 1º e 4º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[39].

Uma vez que ela foi mantida em servidão e trabalhou de forma forçosa e obrigatória, enquanto menor de idade, sem direito aos adequados dispositivos legais que, satisfatoriamente, a protegessem da exploração que sofreu e punisse os autores da prática criminosa[40].

Foi constatado que Siliadin chegou à França com 15 anos de idade em 1994 trazida pela senhora “D”, cidadã francesa, mas de origem togolesa, que acordou com os pais da menor que ela trabalharia em sua residência até reembolsar o dinheiro gasto com sua passagem, para que, depois de regularizada a sua situação de imigrante naquele país, viesse a estudar[41].

Ocorre que, ao chegar à França seu passaporte foi confiscado, sua situação jamais foi regularizada e nunca frequentou uma escola. Exerceu trabalho doméstico sem direito a descanso ou remuneração por vários meses para a citada senhora[42].

Decorrido certo tempo, a senhora “D” ainda a emprestou para o casal “B”, visto que a senhora “B” estava grávida, tinha três filhos e necessita de ajuda para cuidar das crianças e da casa. Neste meio tempo, ia e voltava todos os dias do imóvel do casal “B” para a residência da senhora “D”, sem receber qualquer remuneração ou direito a descanso[43].

Em outubro de 1994 o filho da senhora “B” nasceu e ela decidiu que Siliadin permaneceria somente em sua casa, não trabalhando mais para senhora “D”[44].

A menor trabalhava cerca de 15 horas por dia para o casal, acordava as sete da manhã, preparava o café, levava as crianças para escola ou para as atividades que tivessem, buscava-as, cuidava de todo o serviço doméstico, cuidava do recém-nascido, e, inclusive, dormia no chão em um colchão no quarto deste, para que se fosse preciso, acordasse para socorrê-lo no meio da madrugada[45].

Não possuía horário nem dia de descanso ou lazer, não recebia remuneração pelo trabalho exercido, era obrigada a cumprir todas as tarefas que as crianças ou a casa lhe proporcionassem e não tinha acesso à educação ou direito a férias[46].

Todavia, Siliandin conseguiu fugir no meio do ano de 1995 com a ajuda de uma cidadã haitiana que lhe forneceu trabalho remunerado e condições de alojamento. Contudo, seu tio pediu que voltasse para residência do casal “B”, uma vez que eles prometeram que finalmente regularizariam a sua situação e permitiriam que estudasse[47].

Ao voltar, como era esperado, nada mudou. Mas no ano de 1998, conseguiu encontrar seu passaporte e comentou com um vizinho o que estava ocorrendo com ela, sendo que este, por sua vez, informou o comitê Francês de combate à escravidão moderna. O que permitiu a polícia invadir a casa do referido casal, bem como eles serem processados pelos artigos 225-13 e 225-14 da legislação francesa vigente a época[48].

Nota-se, apenas com a descrição dos fatos, que o caso de Siliadin tratava-se de escravidão moderna, respectivamente de servidão doméstica, pois, seus pais ludibriados pela promessa de um futuro melhor, a entregaram, voluntariamente, a uma cidadã francesa, mas de origem togolesa, igualmente africana, que teoricamente entendia a dificuldade que aquela família devia passar, e, por isto ajudaria sua filha a ter educação e consequentemente condições mais adequadas de vida.

O acordo de trabalho para quitar a dívida contraída pela passagem, sempre ocorre, justamente, para justificar os atos do explorador caso este venha a ser descoberto. Ademais, a vítima era de um país subdesenvolvido que costumeiramente tem seus cidadãos explorados por países como a França, neste tipo de crime. E, principalmente, ela foi aterrorizada com a ideia da prisão, pois seu passaporte foi lhe retirado, o que a impossibilitava de fugir ou procurar ajuda.

No entanto, mesmo que evidente, a França não considerou que Siliadin fosse vítima de um crime contra a dignidade humana, nem mesmo que o caso tratava-se de servidão doméstica; também porque, não poderia, pois como acima já relatado, ela não possuía previsão legal para o crime em comento.

 

4.1. Conceito de Escravidão, Servidão e Trabalho Forçado

Ocorre que, a França ratificou a Convenção sobre a Escravidão de 1927, a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956 e a Convenção sobre o Trabalho Forçado de 1930, as quais trazem no corpo do seu texto o que é considerado escravidão, servidão e trabalho forçado, respectivamente, bem como proíbe o seu exercício.

Assim, necessariamente, ela deveria ter implementado os meios adequados para combater as citadas praticas criminosas, uma vez que ao não punir ou preveni-las, valores fundamentais inerentes ao direito da pessoa humana e os aspectos essenciais da vida privada, deixam de ser tutelados.

Visando que isso não ocorresse, a Convenção sobre a Escravidão de 1927, definiu o que era considerado escravidão. Escravidão, então, é o estado ou a condição de uma pessoa, sobre o qual um ou todos os poderes inerentes ao direito de propriedade são exercidos, ou seja, quando a pessoa é reduzida ao status de um objeto e, terceira pessoa exerce um verdadeiro direito de propriedade legal sobre ela[49].

A Convenção suplementar para abolição da escravatura de 1956, por sua vez, definiu que servidão é: uma forma particularmente grave de negação da liberdade, inclui além da obrigação de executar determinados serviços para os outros, a título oneroso ou não, a obrigação do servo de viver na propriedade dessa pessoa e a impossibilidade de alterar sua condição[50].

A convenção sobre Trabalho forçado de 1930, bem como as Convenções da Organização internacional do trabalho, trazem a definição de trabalho forçado ou obrigatório, e o que não será considerado como tal, consoante se verifica no próprio artigo 4ª, nas alíneas do seu n. 3. da Convenção Europeia de Direitos do Homem. Entende-se, então, por trabalho forçado ou obrigatório, todo o trabalho ou serviço exigido de qualquer pessoa sob a ameaça de qualquer penalidade, para o qual o individuo não se tenha oferecido espontaneamente[51].

 

4.2. A Legislação Penal Francesa

Mas o artigo 225-13 da legislação penal francesa até 2003, não previa a servidão nem muito menos a escravidão, ele tratava, tão somente, do trabalho forçado, desde que este ocorresse pelo aproveitamento da vulnerabilidade ou estado de dependência da vítima. Era, apenas, apenado com 2 (dois) anos de privação de liberdade e previa uma multa de 500.000 francos[52].

O artigo 225-14, por sua vez, previa a mesma pena privativa de liberdade e multa se o trabalho forçado exercido pela vítima fosse incompatível com a dignidade humana, desde que também ocorresse o aproveitamento da vulnerabilidade ou estado de dependência dela[53].

Nota-se que os tipos são vagos e permitem diversas interpretações do que seria um estado vulnerável ou de dependência, ficando a critério do magistrado a decisão sobre esta questão, o que traz uma não uniformidade na jurisprudência, tendo em vista que os tribunais agem de forma mais ou menos restritiva a depender da convicção do Juiz da causa, conforme salientado no relatório apresentado em dezembro de 2001, pelo setor de combate as diversas formas de escravidão moderna da Assembleia Nacional Francesa[54].

A violação a dignidade humana não era um crime em si, e para que ela pudesse ser reconhecida, dependia de outros aspectos, os quais deveriam servir apenas para qualificá-la.

A vítima além de estar à mercê do entendimento da interpretação do Magistrado quanto a sua vulnerabilidade e dependência, também muitas vezes não conseguia a prevenção e punição pretendida para a exploração que foi sujeitada, visto que as poucas medidas legais previstas, muitas vezes deixavam de ser aplicadas em sua totalidade.

 

4.3. As Decisões dos Tribunais Franceses em relação à Siliadin

E isto restou evidente no caso em apreço, uma vez que o casal “B” foi condenado na primeira instância apenas pelo crime previsto no artigo 225-13. Pois, por Siliadin ser imigrante, ilegal e trabalhar 15 horas por dia sem remuneração ou descanso, o tribunal francês considerou que o serviço prestado por ela não tinha sido pago, ou, se pago, era desproporcional. No tocante a sua vulnerabilidade, decidiu, ainda, que por ela ser imigrante e ilegal o seu estado de dependência estava configurado[55].

Todavia, considerou, também, que o crime previsto no artigo 225-14 não foi praticado, pois a dignidade humana de Siliadin não havia sido violada, uma vez que dividia o quarto com um dos filhos do casal, e, este estava em boas condições de higiene. O tempo de trabalho era o mesmo exercido por uma dona de casa, a qual acorda de manhã e só termina suas atividades no final do dia[56].

Destarte, a condição de vida e trabalho que ela era submetida, não era suficiente para caracterizar uma afronta à dignidade humana, sendo que esta só ocorreria se o ritmo do serviço fosse desproporcional, tivesse que empregar força física especial, e, caso fosse insultada e assediada frequentemente[57].

Por conseguinte, o casal foi condenado a pagar a multa de 100.000 francos para recorrente como perdas e danos e, a 12 meses de prisão, sendo que 7 meses foram suspensos[58].

Evidentemente apelaram para o Tribunal de recurso, a qual absolveu o casal de todas as condenações, pois não constatou qualquer aspecto de vulnerabilidade ou dependência da vítima, visto que ela possuía certo grau de liberdade, pois sozinha ia e voltava dois locais onde tinha que deixar os filhos do casal, falava francês e sabia andar pela cidade. Regressou espontaneamente após ter fugido da residência do Sr. e Sra. “B”, e, conforme o depoimento do casal, eles estavam guardando o dinheiro de sua remuneração para entregar quando de sua saída, visando que a vítima tivesse um futuro garantido[59].

O Ministério Público alegou que a decisão do Tribunal de recurso foi meramente baseada em fatos não em direito e por isto deveria ser anulada[60].

O tribunal de cassação, por sua vez, anulou a sentença apenas quanto às consequências civis, ou seja, a indenização devida a vítima pelos atos suportados, no mais manteve a absolvição dos réus[61].

Assim, sem poder dar uma sentença criminal condenatória, o tribunal de recurso de Versales entendeu que houve a afronta apenas ao artigo 225-13, como anteriormente demonstrado pelo tribunal de primeira instância, condenando o casal a pagar a indenização que já havia sido estipulada[62].

No entanto, a vítima não teve o reconhecimento da violação de seu direito, pois nem ao menos criminalmente seus agressores responderam. Mas, mesmo que tivessem respondido, não seria pelos crimes que realmente tinham cometido.

A condição de menor da vítima não foi sopesada, muito menos a privação do seu direito à educação. A forma de vida a qual foi submetida entendeu-se como normal, regular, não diferente da realidade de qualquer dona de casa. Desrespeitando totalmente os seus direitos de liberdade, pois a exploravam e aprisionavam-na naquela residência, através do terror da prisão que a submetiam pelo confisco de seu passaporte.

Submeter alguém a trabalho forçado, escravo ou servidão, por si só, como elencado no artigo 4º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, afronta à dignidade humana. A escravidão é a privação de todas as manifestações de liberdade, a destruição da personalidade da pessoa. Uma afronta que não prevê exceções, que não permite sua prática por qualquer motivo.

Assim, visando que o Estado francês fosse condenado pela falha de sua obrigação positiva, recorreu ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

 

4.4. A Decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

 

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por sua vez, considerou que as obrigações positivas dos Estados ao abrigo do artigo 4º da Convenção, devem ser vistas como a exigência de repressão e prevenção eficaz a qualquer ato destinado à manutenção da pessoa nas situações ali previstas[63].

Todavia, igualmente, considerou que a legislação penal francesa vigente a época dos fatos, não tratava especificamente dos direitos garantidos nos termos do artigo 4º da Convenção, mas dizia respeito a uma forma muito mais restritiva, a exploração através do trabalho e sujeição a condições de vida que são incompatíveis com a dignidade humana[64].

Assim, como a França havia ratificado todas as convenções que previam que a Autoridade Competente não podia impor ou pemitir a imposição de trabalho forçado ou obrigatório ao benefício de particulares, bem como deveria tomar todas as medidas legislativas necessárias para abolir a prática em que uma criança ou jovem com idade inferior a 18 anos é entregue por seus pais ou tutor com vista à exploração de seu trabalho e, protegê-los da exploração econômica através do desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interfira na educação da criança, ou, ainda que seja prejudicial a sua saúde física, mental, ao seu desenvolvimento moral, espiritual e social. Agir de forma contraria ao elencado, não prevendo uma legislação que proteja o menor da exploração ou puna de forma eficaz a práticas elencadas no artigo 4º, demonstra que o Estado francês fracassou na aplicação do artigo 1º da Convenção, para configurar um sistema de julgamento e punição que garantisse de forma tangível e eficaz a proteção aos direitos garantidos no artigo supracitado[65].

Notou que os artigos penais que tratavam sobre o tema, ao menos falavam de menoridade, sendo que esta também não foi utilizada para verificar a vulnerabilidade e dependência da vítima[66].

Concluiu que o trabalho forçado pelo qual a vitima foi submetida era evidente, visto que embora não tenha sido ameaçada expressamente a suportar algum tipo de penalidade, sua situação era equivalente, pois estava ilegal no país e sabia do risco que corria em ser presa[67].

Notoriamente, pelos fatos trazidos aos autos, também não trabalhou espontaneamente para o casal, foi obrigada a residir na casa do Sr. e Sra. “B”, como menor, vulnerável e isolada em um país sem conhecer ninguém que pudesse ajudá-la, além da sua ausência de recursos financeiros, não tinha como modificar a sua situação. Teve que trabalhar obrigatoriamente nas condições impostas pelo casal, ou seja, 15 horas por dia, sem descanso e direito de deixar a residência quando quisesse, a dependência do casal foi configurada, visto que seu passaporte foi confiscado e não tinha como acreditar em melhorias, pois foi lhe negado o direito a educação. O que comprovou, que Siliadin foi mantida em servidão[68].

Considerou, também, que a proteção conferida a Silidian pela lei civil foi insuficiente e, nos casos onde os valores fundamentais e os aspectos essenciais da vida privada estão em jogo, à dissuasão eficaz é indispensável, e só pode ser alcançado por disposições penais[69].

Ocorre que, no caso em apreço, a requerente além de ser submetida a tratamento contrário ao artigo 4º, não foi capaz de ver os responsáveis pela prática delituosa condenados pela lei criminal. Destarte, o tribunal conclui que realmente ocorreram violações das obrigações positivas que incumbia ao Estado defender, em virtude do artigo 4º da Convenção[70].

A França apenas arcou com os honorários advocatícios e custas processuais, pois, além de sua legislação penal ter sido modificada no ano de 2003, Siliadin não quis ser indenizada pelo desrespeito aos seus direitos[71].

Quanto à mudança dos dispositivos penais franceses[72], cabe salientar, que não houve a menção expressa ao crime de servidão nem ao de escravidão. Eles continuam apenas incriminando o trabalho forçado, desde que a vulnerabilidade ou estado de dependência da vítima seja aparente.

Significativamente, apenas ocorreram mudanças em relação ao aumento da pena privativa de liberdade, da majoração da pena de multa, e, a criação de um tipo legal que qualifica o crime vertente quando cometido contra crianças ou mais de uma pessoa.

Flagrantemente, a França continua possuindo falhas na sua legislação, o que ainda a prejudica no momento de arcar com suas obrigações positivas no tocante ao combate da escravidão.

Em relação ao julgamento do caso Siliadin pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, percebe-se que sua decisão foi baseada nas Convenções que estabeleceram os conceitos dos crimes de escravidão, servidão e trabalho forçado ou obrigatório, bem como no relatório da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o qual trazia os dados sobre a situação da escravidão moderna neste continente.

Anteriormente nenhum caso de escravidão doméstica havia sido julgado pelo Tribunal. Assim, fez-se necessário, estabelecer critérios objetivos para o reconhecimento da servidão. A vítima, para tanto, tem que estar obrigada a executar determinados serviços, não importando se eles são remunerados ou não; ser forçada a viver na propriedade do explorador e estar impossibilitada de alterar sua condição.

No entanto, esses critérios foram estabelecidos conforme a escravidão moderna se apresenta atualmente, ou seja, pelos atos costumeiramente praticados pelos explorados para reduzir a vítima a essa condição.

O critério da impossibilidade de alterar a sua condição, por exemplo, foi caracterizado pelo confisco do passaporte, ato comum aos aliciadores de imigrantes. Com a privação da vítima de seus documentos, ela não poderá ir e vir para os lugares que pretender; fugir ou procurar ajuda, pois a sua situação ilegal no país pode ser exposta, o que acarretaria na sua prisão.

Frisa-se, ainda, que o Tribunal como defensor dos direitos do homem, não poderia ter julgado o caso de forma contrária. Pois, Siliadin não foi instrumentalizada como meio para realização de determinados objetivos, mas reduzida à categoria de mero objeto através da prática de coações psíquicas pelos seus explorados, que o fizeram com a finalidade de torná-la sua serva. Todas as formas de liberdade lhe foram privadas, deixou de possuir autonomia de vontades.

A doutrina de proteção integral dos menores não foi respeita, o Governo francês nada fez para que a plenitude de seus direitos fosse alcançada. Seu desenvolvimento, também, foi prejudicado pela falta de acesso à educação e um lar saudável.

Não há dúvidas que sua dignidade foi atentada pela prática de um dos crimes que não tolera exceção, justamente, por ser considerado internacionalmente grave. Há doutrinas que o equiparam a um quase homicídio, e, só não o consideram homicídio, porque o estatuto de pessoa humana pode ser recuperado.

 

5. A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA

Portugal ratificou a Convenção de Genebra sobre a escravatura de 1926 e a Convenção Suplementar de Genebra relativa à abolição da Escravatura, Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura de 1956[73].

Em 1982 instituiu no Código Penal da época o artigo 161º, o qual qualificava como crime a escravidão, bem como atribuía a ela pena equivalente ao do crime de homicídio, pois por implicar na negação de todas as expressões da personalidade humana, necessitava ser punida duramente[74].

No entanto, em seu território nunca houve uma condenação por essa prática criminosa, o que levou a discussão se seria necessário mantê-lo como tipo legal. A Comissão de Revisão do Código Penal de 1982 decidiu afirmativamente para questão levantada, visto que há necessidade de proteger seus nacionais no estrangeiro[75].

Atualmente, a proibição da escravidão está elencada no artigo 159º do Código Penal Português e, o bem jurídico tutelado por ela continua sendo a dignidade da pessoa humana[76].

O crime consiste na redução de outra pessoa ao estado ou à condição de escravo, ou seja, considerá-la como sua propriedade e valorá-la como objeto. O conceito utilizado pela legislação portuguesa para definir o que é escravidão, foi trazido pela Convenção de Genebra sobre a Escravatura de 1926[77].

A servidão, por sua vez, está elencada na alínea b) do citado artigo, nos moldes da Convenção Suplementar de Genebra de 1956[78].

O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa que tenha tido a sua dignidade violada por ser tornar objeto para alguém. Os inimputáveis também poderão ser vítimas do crime de escravidão, e, para eles, basta o tratamento como animal durante um determinado período da sua existência, para configurá-la[79].

Na escravidão, o dolo é considerado elemento essencial do tipo, ou seja, o crime só ocorre se o agente estiver motivado a reduzir a pessoa a seu mero objeto[80].

 

6. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

O Brasil apenas passou a se preocupar com o trabalho escravo na década de 90, após receber sérias denúncias dos órgãos internacionais dos direitos humanos. Assim, iniciou-se a discussão de conceitos, definições de critérios, elaboração de propostas de lei e criação de espaços para o combate dessa prática ilícita[81].

No ano de 1998 o artigo 207 regulamentou no Código Penal Brasileiro a proibição de aliciamento de trabalhadores para outros estados em várias modalidades. No entanto, não foi suficiente para o efetivo combate ao crime vertente. Assim, em 2003, o artigo 149 do dispositivo citado passou a proibir à redução de alguém a condição análoga a de escravo e todas as suas modalidades[82].

Ocorre que, o combate a esta prática no Brasil é extremamente problemático, visto que os agentes públicos quando tentam fiscalizar áreas rurais para verificar a incidência do crime, são muitas vezes alvejados pelos capangas do proprietário da terra. No Estado de Minas Gerais, funcionários do Ministério Público Trabalhista foram assassinados quando investigavam o seu descumprimento[83].

O Governo se viu obrigado, então, para tentar facilitar a operação de combate, a aprovar uma Emenda Constitucional que prevê a desapropriação, sem indenização, da propriedade envolvida em trabalho escravo[84].

Nota-se, que não obstante a legislação tenha avançado bastante para atingir a obrigação positiva do Estado, o Brasil continua sendo o 9º país no mundo com o maior número de pessoas reduzidas à condição análoga a de escravo[85].

 

7. CONCLUSÃO

O problema da escravidão sempre se fez presente na história da humanidade. As civilizações antigas viram benesses em escravizar seus semelhantes; pois, além de encontrar uma utilidade para os prisioneiros de guerra, também proporcionava um significativo aumento das produções agrícolas e desonerava os homens livres de muitas obrigações.

Vários foram os motivos e as formas de escravizar o ser humano. Porém, no século XIX, visando apenas seu próprio interesse e não o combate ao desrespeito à dignidade da pessoa humana, a Inglaterra promulgou uma lei que proibia o tráfico de escravos no oceano Atlântico. Assim, a escravidão passou a ser abolida na maioria dos países, ou seja, sua prática tornou-se ilegal, o que não significa que foi capaz erradicá-la.

Com o passar do tempo, os direitos humanos ganham força no cenário internacional, diversas Convenções são ratificadas por muitos países para o combate as inúmeras formas de desrespeito ao homem. A escravidão era uma delas, a qual passou a ser vista como afronta a todas as formas de expressão da personalidade humana, como um homicídio moral. Desta feita, foi proibido que houvesse qualquer tipo de exceção para tolerância de sua prática, tornou-se cláusula pétrea no direito internacional.

Ocorre que, os exploradores sempre encontram um meio para burlarem as normas, para conseguirem se beneficiar do trabalho forçado, da servidão ou da própria escravidão. Atualmente, traficam pessoas de países subdesenvolvidos, com uma taxa elevada de pobreza, para se aproveitarem do sonho daqueles que acreditam que podem, em países com maiores oportunidades, mudarem suas vidas.

O caso Silidian corrobora a veracidade dos dados trazidos pelos vários relatórios formulados pela Organização Internacional do Trabalho, Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, Núcleo regionais de combate à escravidão, dentre outros.

Pois, seus pais, residentes em um país pobre da África, foram ludibriados pela oportunidade de verem a sua filha, menor de idade, ter um futuro diverso dos deles, para mais tarde, quem sabe, poder até ajudá-los.

No entanto, ao entregarem a menor na credibilidade do cumprimento da promessa de fornecerem a ela estudo e trabalho, não sabiam que esta jamais teria acesso a educação e se tornaria uma serva na casa de uma família francesa.

Silidian, para que não pudesse fugir e se desvencilhar da condição que lhe foi imposta, teve os seus documentos tomados. Assim, passou quatro anos sendo obrigada a trabalhar 15 horas por dia, sem direito a remuneração, descanso e educação. Cuidava de todas as tarefas domésticas, bem como de três crianças do casal, era obrigada a dormir no quarto de um recém-nascido para estar à disposição sempre que ele precisasse.

Todavia, em 1998 conseguiu encontrar seus documentos e pediu ajuda para o vizinho de seus exploradores, e ele comunicou a polícia do ocorrido.

O casal que reduziu Silidian a condição de sua serva, foi julgado pelos tribunais franceses e considerado inocente dos crimes praticados contra ela. Foram condenados, apenas, a lhe pagar uma indenização como perdas e danos no juízo cível.

Destarte, Siliadian recorreu ao Tribunal dos Direitos do Homem contra o Governo francês, alegando que ele havia falhado no cumprimento de suas obrigações positivas, nos termos dos artigos 1º e 4º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O Tribunal, por sua vez, declarou que houve a violação do artigo 4º, pois Siliadin flagrantemente havia sido submetida à servidão doméstica pelos seus exploradores.

Nota-se, portanto, que muitos países não possuem meios adequados de combate à escravidão. Ratificam as Convenções, mas não modificam a sua legislação.

Portugal, embora tenha elencado em seu Código Penal um artigo que mais se aproxima do desejado pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, parece não possuir muitos meios de fiscalização da sua prática, pois até o de 1999, ainda, não havia julgado ou condenado nenhum caso de escravidão.

O Brasil, por sua vez, é o nono país no mundo com maior incidência do crime em apreço. O Governo tem investido duramente no combate a sua prática, mas muitas vezes não consegue alcançar grandes resultados, por seus agentes serem ameaçados ou até mortos pelos proprietários de terras.

 

8. BIBLIOGRAFIA

CARLOS, Vera Lúcia. Estratégia de atuação do Ministério Público do Trabalho no combate ao trabalho escravo urbano, in Trabalho escravo contemporâneo: O desafio de superar a negação (São Paulo, 2006).

CARRILLO DE ALBORNOZ, Antonio Ortega, Derecho Privado Romano (Málaga, 2010).

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COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Sean Meville (São Paulo, 2007).

DIAS, Jorge de Figueiredo. Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo I (Coimbra, 1999).

JOLY, Fábio Duarte. A escravidão na Roma antiga (Rio de Janeiro, 2006).

MARASCHI, Cláudio. O trabalho escravo no Brasil contemporâneo. (São Paulo, 2005).

MELO, Antônio Camargo de. Produção, consumo e escravidão – Restrições econômicas e fiscais – Lista suja, certificados e selos de garantia de respeito às leis ambientais trabalhistas na cadeia produtiva, in Trabalho escravo contemporâneo: O desafio de superar a negação (São Paulo, 2006).

NASCIMENTO, Amaury Mascaro. Direito do Trabalho (São Paulo, 2009).

PIOVESAN, Flávia. Trabalho escravo e degradante como forma de violação dos direitos humanos, in Trabalho escravo contemporâneo: O desafio de superar a negação (São Paulo, 2006).

SCHWARZ, Rodrigo Gracia. Trabalho escravo: A abolição necessária (São Paulo, 2008).

VANUSSI, Marcela Bastazini. Prevenção, punição e erradicação do trabalho escravo em face aos direitos humanos (Itu, 2010). Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj031818.pdf. Acesso em 20 de maio de 2012.

VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves. Trabalho escravo contemporâneo: O desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006


[1] SCHWARZ, 2008, p. 43-44; e VANUSSI, 2010, p. 08.

[2] Id., 2008, p. 45; e VANUSSI, loc. cit.

[3] VELLOSO e FAVA, 2006, p. 32; e VANUSSI, 2010, p. 09.

[4] JOLY, 2006, p. 19; Id., 2010, p. 10.

[5] COULANGES, 2007, p. 22-24; e VANUSSI, 2010, p. 10.

[6] CARRILLO DE ALBORNOZ, 2010, p. 30-31.

[7] COULANGES, 2007, p. 25-28, VANUSSI, ob. cit., p. 10-11.

[8] MARASCHI, 2005, p. 34-36; e Id., 2010, p. 11.

[9] Ob. cit., p. 36, e VANUSSI, 2010, p. 11.

[10] JOLY, 2006, p. 56; e Id., 2010, p. 12.

[11] CARRILLO DE ALBORNOZ, 2010, p. 30-33; e VANUSSI, 2010, p. 12.

[12] JOLY, 2006, p. 152-156; e Id., 2010, p. 14.

[13] “O liberto n&atild

Assuntos: Ação trabalhista, Criminal, Direito do Trabalho, Direito Penal, Direito Processual do Trabalho, Direitos trabalhistas, Trabalho, Trabalho escravo

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