Profissionais merecem ser tratados como objetos de consumo?

16/05/2012. Enviado por

A obsolescência programática deveria estimular a atividade econômica. Contudo, profissionais foram reduzidos à condição de mercadoria no momento em que novas tecnologias e as exigências de crescimento deterioraram o ambiente do trabalho

"Não tenho a pretensão de que uma pessoa que gosto, também goste de mim, nem que eu faça a falta que ela me faz. O importante é saber que em algum momento fui insubstituível, e que esse momento será inesquecível..." (Fernando Pessoa).

Em tempos de sociedade líquida1, a obsolescência programática2, num primeiro momento, engendrada para estimular a atividade econômica, chegou a um impasse.

Consertar uma coisa defeituosa ficou tão caro, que é melhor comprar uma coisa nova. As pessoas foram incentivadas a jogar fora o produto “velho” e comprar um novo, pois as compras aqueceriam a atividade econômica e o trabalhador manteria o emprego. Assim concebeu-se a ideia do consumismo.

No entanto, a intensificação das trocas do “velho” pelo novo levou ao desperdício de matéria-prima, água e energia, não só das usadas na produção dos produtos descartados, mas também das que são produzidas para durar pouco.

Esse modus operandi, calcado na ideia de que tudo deva ser substituído, influenciou na relação entre pessoas. Essa percepção destitui do ser humano a condição de sujeito e o transforma em objeto passível de troca, cujo “preço” é aferido pelas possibilidades de “uso”.

Para que se tenha noção, é comum o exemplo de homens idosos “revigorados” que se sentem em “plena forma”. Com isso, trocam cônjuges contemporâneos por mulheres bem mais novas. Há quem chame isso de “efeito Viagra”. Renovados, eles alegam que o amor não tem idade. Todavia, é incomum se houver grande diferença etária.

Na prática, prevalece o interesse e a troca. A lei civil tutela o idoso acima de 70 anos, ao dispor que os casamentos se realizem, obrigatoriamente, pelo regime da separação de bens (art. 1641, inciso II).

É triste ver seres humanos reduzidos à condição de mercadoria, num momento em que as novas tecnologias e as exigências de crescimento do ritmo das tarefas deterioram o ambiente de trabalho.

O pagamento de horas extras é seguido pelo “descarte” do empregado que, fatigado e exaurido, rende menos. Celulares e computadores transformaram as ferramentas de trabalho e permitiram o aumento das horas à disposição do empregador. Invadiu-se o tempo privado e criaram-se, camuflada e sutilmente, novas formas de servidão.

Pasmem! Usar o tempo livre do empregado, a qualquer dia e hora, inclusive nos feriados e fins de semana, é normal para a justiça trabalhista. A Corte Superior em Brasília compreende que usar bip e celular para poder ser encontrado pelo empregador, quando necessário, “não significa uma restrição à liberdade de locomoção do contratado”.

Em 24 de maio de 2011, o TST editou o Enunciado nº 428: "o uso de aparelho de intercomunicação, a exemplo de BIP, pager ou aparelho celular, pelo empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso".

É preciso convir que o uso de bip e celular possa não obrigar a deslocamento, mas a constante interseção, além de dispor do tempo, desrespeita o período de trabalho. Há, sem sombra de dúvidas, um enriquecimento sem causa pelo empregador, na medida em que este não remunera o serviço prestado, ainda que não haja deslocamento.

Sub-repticiamente, houve repristinação de arcaicas questões sociais, ora fortalecidas, ante a dimensão da lesão que se avizinha, o que requer novas formas de proteção jurídica de modo a evitar que o estado de constante servidão transforme o ser humano em objeto descartável.

A ascensão do individualismo, sob o lema “devo completar-me de mim mesmo”, de Friedrich Nietzsche3, e a rejeição à solidariedade, mitigaram a participação dos trabalhadores na vida sindical.

O subordinado “rejeitado do processo produtivo” alonga a fileira dos excluídos que são sustentados pela previdência, num momento em que o “Estado do bem estar social” se desfaz. O problema tem o nexo de causalidade no desenvolvimento tecnológico e nos diversos modos de organização.

Fight Club, filme dirigido por David Fincher em 1999, retrata desafios atuais.  Um deles está na situação em que o personagem interpretado por Edward Norton é tratado como um objeto descartável, além de ter que suportar a constante pressão no trabalho para entregar inúmeros relatórios com rapidez. Isso o leva a apresentar dificuldades para conseguir dormir.

Outro desafio é retratado pelo ator Brad Pitt, num papel de trabalhador de bom padrão, que manifesta inconformismo com um estilo de vida que o obriga a trabalhar em situações adversas, para ter dinheiro bastante e poder trocar de carro, móveis e utensílios, além de adquirir objetos que não precisa para sentir-se incluso nos grupos de convívio e evitar ser descartado da vida em sociedade.

É preciso evitar a disseminação da perversa “lógica do descarte” sobre as pessoas no ambiente laboral, de sorte que a precaução e a prevenção permeiem a edificação de novel normativo trabalhista, pois não se pode dissociar o envolvimento e o comprometimento do trabalhador da prestação do trabalho.

O convívio longo num local que, em regra, desencadeia stress, doenças e lesões que comprometem a integridade física e mental do indivíduo, aliado ao aumento da violência social e seus reflexos no trabalho, tudo isso leva o profissional ao absenteísmo e à diminuição da produtividade.

Nessa invertebrada sociedade, ressurgiram problemas de séculos atrás, agora com maior poder de estrago, por incutir nas relações de trabalho a lógica da rejeição, que corrói, insidiosamente, os pilares de sustentação do direito trabalhista.

Nesse cenário, cresce a importância da atuação dos sindicatos, que conhecem de perto os locais de trabalho e os riscos. Há pertinência na atuação do Ministério Público do Trabalho, seja na celebração dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com força executiva (art. 876, CLT) seja no ajuizamento de Ação Civil Pública (art. 83, III, LC 75/1993).

O binômio dever ser/sansão deve incorporar princípios de precaução e prevenção, ao prever medidas reparatórias, para funcionar como marco de resistência e permitir que empregados e servidores tenham direito a uma vida digna e impedir a precarização causada pela lógica que os reduz a objetos de descarte.

Por fim, é relevante mencionar o aforismo: “ninguém é insubstituível”, que significa “todos são descartáveis”. Essa máxima fere a dignidade humana, além de ser descabida em um local onde há cidadãos prestando serviços profissionais.

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[ 1 ] BAUMAN , Zygmunt, professor nas universidades de Varsóvia e Leeds, diz que vivemos na sociedade líquida, assim classificada pela intensa mutabilidade, pois “líquidos mudam de forma rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, não podem manter a mesma forma por muito tempo e, por isso, no atual estágio, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem”.

[ 2 ] A “obsolescência programática” foi a alternativa, usada na primeira metade do século passado, para estimular a atividade industrial e superar a depressão causada pelo crash de 1929. Na prática, reduziu-se a vida útil dos equipamentos para que se pudesse vender mais e, assim, impulsionar a retomada econômica.

[ 3 ] Nietzsche, Friedrich Wilhelm - Assim falava Zaratustra- tradução Ciro Mioranz a - Editora Escala- São Paulo.

Assuntos: Consumidor, Direito do consumidor, Direito do Trabalho, Direito processual civil, Direitos trabalhistas, Trabalho

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