Mais Gotas de Justiça

05/08/2016. Enviado por

Como se dá na praxe do dia-a-dia forense o entendimento do que venha a ser o valor justiça pelos olhos da filosofia do direito e do jurisdicionado. Breve escorço sobre o tema.

O valor justiça(do latim justitia) comporta variegados matizes, e já foi alvo de digressões por vários estudiosos da filosofia jurídica. Em suma, pode-se dividi-las nas seguintes espécies, que traduzem um extrato que já amparou, no decorrer da história do direito, muitos casos jurídicos. São elas a saber:

1-              Vingança privada – era a Lei do Talião, traduzida na máxima: Olho por olho, dente por dente. É devida a Moisés(+- 1.250 a.C.).Foi codificada no célebre Código de Hamurábi(1.728-1.688 a. C.)

2-           Justiça primitiva – os julgamentos baseavam-se nos juízos de Deus, mediante consultas à oráculos, são as famosas ordálias de Deus ou juízos de Deus(Século XII da era cristã), abolidos pelo IV Concílio de Latrão(1.215 d. C);

3-           Justiça distributiva – cunhada por Aristóteles – trata-se de uma espécie de justiça que procura de forma justa dar a cada qual o que lhe é devido, divergindo do conceito de justiça retributiva;

4-           Justiça comutativa – regula as relações no mesmo plano de igualdade, havendo um intercâmbio entre as pessoas;

5-           Justiça do caso concreto – seu criador é Aristóteles – nesta espécie se vê como a justiça é, realmente, um valor a ser perseguido à luz do caso particular, a partir da indução, conhecido como dedutivismo inverso, vai-se das leis particulares do caso concreto às leis gerais do ordenamento jurídico;

6-           Justiça aparente – “se se conduz a uma tirania, é uma concepção de justiça a que queremos a todo custo evitar”;[1]

7-           Justiça tardia – Ruy Barbosa dizia que justiça tardia era injustiça célere;

8-           Justiça corretiva ou justiça formal – consiste em tratar casos semelhantes de forma semelhante, também num processo indutivo, do particular ao geral. Na concepção de Chäim Perelman ela concerne a categorias essenciais, ou seja, devendo a justiça ser aplicada de acordo com as diferenças que estas categorias possuem;[2]

9-           Justiça individual – é a justiça que concerne ao sujeito considerado de per si, não se confunde com a justiça particular;

10-        Justiça geral – é a justiça que considera o coletivo, a ordem pública na observância das leis, também chamada de justiça legal;

11-        Justiça subjetiva- é a justiça ligada a ideia do direito como facultas agendi(faculdade de agir), contrária a ideia da objetividade;

12-        Justiça objetiva – conectada a ideia da norma agendi(norma de agir), configurada na expressão alemã da objetivação do processo constitucional Objektives Verfahren, tem por pressuposto a mantença da integridade do direito sem a preocupação com a justiça subjetiva;

13-        Justiça particular – conduz à igualdade das partes entre o indivíduo que age e do indivíduo que se sujeita à ação;

14-        Equidade – numa acepção estrita consiste na igualdade de tratamento, ou seja, tratar igualmente os desiguais na medida que se desigualam, na máxima aristotélica consagrada na visão de Ruy Barbosa;

15-        Justiça e liberdade – alcandorada por Jhon Rawls assim preconiza: “cada pessoa deve ter igual direito ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais compatível com um sistema similar de igualdade para todos.[3] Este é o denominado princípio da máxima igual liberdade.

16-        Justiça social – tem em vista o bem comum, encontra-se positivada nas constituições modernas com o advento do neoconstitucionalismo (art. 6º e ss., da Constituição da República Federativa do Brasil);

Antigamente, após o período da vingança privada e da justiça primitiva, a justiça podia ser definida como conformidade à vontade do soberano. Passou pela decantada ideia da volonté générale(vontade geral) de J.J. Rousseau, dando origem aos lemas da Revolução Francesa burguesa de 1789(Fraternité, egalité, liberté – fraternidade, igualdade, liberdade), ainda com uma essência de liberdade do indivíduo frente ao Estado na relação vertical que se dá entre o indivíduo particularmente considerado e aquele. Chegando mesmo à concepção de vontade do legislador, em que se perquiria, estaticamente, a intenção do legislador(a chamada mens legislatoris), hoje foi substituída pela concepção dinâmica da voluntas legis, segundo a qual a legislação ainda que antiga pode se adaptar aos novos tempos ou às exigências dos fins sociais a que ela se dirige(art. 4º, da LINDB), indo ao seu âmago e telos(objetivo), que deu origem à interpretação teleológica.

Todavia, nota-se uma ideia central: o de que a justiça se reveste de igualdade, isonomia de todos perante a lei e na lei(art. 5º, caput e incisos I e II, da Constituição da República). Podendo-se traduzir o princípio da igualdade num dos princípios de justiça, dos quais falaremos mais adiante.

No mais, o valor justiça possui variegadas acepções tomadas, ao estabelecimento do caso concreto, se adequam a uma visão única do direito: os princípios de justiça.

No entanto, enquanto valor não se ajustará as diversas espécies, objetos do presente artigo. Elas não se esgotam e não se esgotarão nunca. Os métodos das ciências naturais e da matemática como o dedutivismo e a indução, em se tratando a justiça de valor, ou como princípio, nunca se amoldará, no caso concreto, matematicamente, a quem tem razão.Não havendo a subsunção dos fatos à norma, por ser mais adequada à lógica matemática e às ciências naturais. (Há quem entenda que o dedutivismo é subsunção e há quem faça uma diferenciação.) Ora, ter razão toca, especialmente, ao direito de ação, do autor da ação. Mas poder-se-ia, também, tratar do direito de defesa do réu, porque o autor pode não ter a razão adequada à norma jurígena.

Vistas em resumo podemos qualificar a justiça por uma razão ética, mais ampla que a simples moral.Com fundamento nas espécies de justiça acima cotejadas, ver-nos-emos diante da seguinte “equação”:

- em primeiro lugar, ela traduz o que é reto, ético, probo;

- em segundo lugar, ela pode exprimir uma vontade de punição, o que a equipara a vingança privada;

- em terceiro lugar, ela pode revestir o caráter de retribuição, o que a caracteriza, também, como mera vendeta;

- em quarto lugar, ela é encarada com o caráter de ensinamento, quase andragógico;

- por último, num quinto sentido, ela se reveste do jusnaturalismo, consagrado nos três adágios: viver honestamente(honest vivere), dar a cada qual o que lhe é devido(suum cuique tribuere) e não lesar outrem(neminem laedere).

O homem natural se preocupa com a justiça do caso concreto. Ou seja, a cada um segundo sua razão, não seu pensar somente, mas o direito – que se tem por violado - protegido pelo ordenamento jurídico(jus est norma agendi) que o faz ator social do seu direito de ação(jus est facultas agendi). Que podem se transmutar nas cinco “formulações” propostas. Entretanto, a quinta proposta é a melhor delas para o estágio atual da evolução do direito e da humanidade. A primeira se consubstanciaria em manter a integridade do ordenamento jurídico, sua lisura. A vingança ou vendeta não cumpre, de fato, o escopo de organização da vida em sociedade, telos da norma jurídica.

A justiça além de um valor é um princípio. Enquanto princípio ele diz respeito ao que é reto, ao que é conforme ao direito, e não mais conforme à vontade do Soberano. Todo ordenamento jurídico, em que pese a pluralidade nos diversos países, para quem adota a teoria pluralista de Hans Kelsen em detrimento da teoria monista do mesmo doutrinador, sempre, imperativamente, impõe um dever ou um direito aos jurisdicionados  e aos que ainda não o são.

Os princípios de justiça, mais achegados ao eidos desta, consistem na igualdade e na dignidade da pessoa humana. Estes princípios se adequam a ideia de justiça, porque delimitam o campo de atuação do agir do ser humano. No que tange a este, eles promovem o mínimo existencial, assim como o retrocesso social, haja vista que o homem é espiritual, mas, também, um ser material. A dimensão material do ser humano pode não levar à felicidade, porém contribui para a dignidade da pessoa humana. No que concerne àquele a isonomia perante a lei e na lei, leva a que todos se sujeitem por correlação à dignidade da pessoa humana, inclusive no que diz respeito ao processo judicial em que a morosidade tem por esteio a razoável duração do processo e a celeridade da tramitação(art. 5º, inciso LXXVIII, da Magna Carta), tendo em vista a lisura do ordenamento jurídico.

Nota-se na numeração elencada aspectos negativos e positivos, naqueles casos a justiça privada, a justiça tardia e a justiça aparente. Em seus aspectos negativos é claro que a justiça se comalta em injustiça, como no caso da justiça tardia. A aparente tem uma capa de virtuosidade que esconde arbitrariedades e a tirania.

Nos recursos de estrito direito, por exemplo, tais como os recursos extraordinário e especial, não há que se falar em justiça da decisão em justiça do caso concreto é tomada na acepção de valor, levando o operador do direito a interpretação variada, quando, em verdade, uma interpretação correta e única se dá através da jurisprudência reiterada e uniforme. Em se tratando destes recursos, a justiça deverá ser observada como princípio. No entanto, enquanto princípio a justiça é amparada de forma unívoca, tendo em vista a lisura ou a integridade do ordenamento jurídico. Numa função nomofilácica. Porque se não é tido por princípio, não teria por que a organização da sociedade nas relações jurídicas verticais (Estado e particular) e horizontais(particular e particular), num ordenamento jurídico em que se encontram positivadas ditas relações.

Noutra acepção, temos princípios de justiça, como por exemplo, o utilitarismo de Jhon Stuart Mill e Jeremy Bentham, não no seu sentido puro, mas, resumindo, seria o sacrifício de uma minoria em prol da felicidade da maioria. Não estreita-se o princípio de justiça utilitário com o princípio de justiça da dignidade da pessoa humana que é, por seu turno, um princípio de justiça universalizante. Encontrando-se este em conceitos normativos que densificam a porosidade do conceito jurídico indeterminado, como no caso do princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto valor, num sentido neo-juspositivista, além de dever ser aplicado/interpretado, no caso concreto, de acordo com a trama fática que advém das vicissitudes e particularidades da fattispecie concreta, posto que segundo Friedrich Müller enunciados normativos não são genericamente abstratos e a norma difere, conteudísticamente, de seu texto.[4]

A justiça comutativa poderia ser interpretada/aplicada-, para Heidegger e Gadamer estas não acontecem na compreensão de forma cindida-, a conciliação, que é bem mais ampla que o mero acordo, embora este constitua uma partícula daquela, como meio dissuasório de heterocomposição, se torna uma forma de pacificação com justiça, patenteando-se em mais uma dimensão do princípio da igualdade.

Por fim, a justiça é paz social para quem a busca ao dirimir conflitos, mas é, também, a paz do indivíduo particularmente considerado, notadamente se ele crê que está com a razão, e de fato se isto se confirma na procedência do pedido da sentença de mérito ou numa possível reforma do julgado.

Por Karla Christina Faria de Almeida, advogada, especialista em processo civil.

BIBLIOGRAFIA

HART, H.L.A.Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Tradução: GIRHARDI, José Garcês.ESTEVES, Lenita Maria Rimoli Editora Elsevier. Campus Jurídico. Rio de Janeiro: 2010, p. 258

MENDONÇA, Paulo Roberto Soares A argumentação nas decisões judiciais. Editora Renovar. 3 ed. Rio de Janeiro: 2007, p. 108

MÜLLER, Friedrich. O Novo paradigma do Direito. Introdução à teoria e metódica estruturantes.3 ed. rev., at, e amp. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo:,2012, p. 60 e 58.

PERELMAN, Chäim. Lógica jurídica Editora Martins Fontes.2 ed.2004, p. 162



[1] PERELMAN, Chäim. Lógica jurídica Editora Martins Fontes.2 ed.São Paulo:2004, p. 162

[2] Apud Paulo Roberto Soares Mendonça.A argumentaçãos nas decisões judiciais. Editora Renovar. 3 ed.Rio de Janeiro: 2007, p. 108

[3] Apud HART, H.L.A.Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Tradução: GIRHARDI, José Garcês.ESTEVES, Lenita Maria Rimoli Editora Elsevier.Campus Jurídico.Rio de Janeiro:2010, p. 258

[4] MÜLLER, Friedrich.O Novo paradigma do Direito.Introdução à teoria e metódica estruturantes.3 ed. rev., at, e amp.Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: 2012, p. 60 e 58. 

Assuntos: Administrativo, Direito Administrativo, Direito Civil, Direito do Trabalho, Direito Penal, Direito processual, Processo, Questões processuais

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