As consequências legais do incêndio em Santa Maria

04/02/2013. Enviado por

O MeuAdvogado entrevistou o Dr. Arlei Quevedo, especialista em ações indenizatórias e direito criminal, atuante na região de Santa Maria - RS. Ele abordou as responsabilidades, o processo de indenização e o papel do estado, em relação ao incêndio.

Desde a madrugada de domingo, 27/01, o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria – RS, já deixou 237 mortos, e outras 97 pessoas continuam internadas, 35 em estado grave. A tragédia é o terceiro maior desastre em casas noturnas do mundo, e o segundo incêndio mais mortal do Brasil.

O delegado responsável pelo inquérito listou quatro irregularidades na boate: uma única saída (legislação estadual determina no mínimo duas), a superlotação da casa, o revestimento (espuma inflável como isolante acústico, vetado por lei municipal) e o uso de sinalizadores impróprios para locais fechados (o que requer autorização especial). Além disso, sabe-se também que houve falhas na iluminação de emergência e nos extintores, e que a boate estava com o alvará vencido desde agosto do ano passado.
Considerando que o pedido de prisão preventiva do dono da boate, seu sócio, e dois integrantes da banda já foram expedidos, o MeuAdvogado entrevistou o Dr. Arlei Quevedo, especialista em ações indenizatórias e direito criminal, para esclarecer os procedimentos legais cabíveis no episódio.


1. Legalmente, quem pode ser responsabilizado pelo incêndio na boate Kiss?

Evidentemente, os sócios formais e os membros do grupo que proporcionaram o espetáculo. Além desses, todo aquele que, de qualquer modo, tenha contribuído para o evento danoso, entre eles, os gerentes e administradores e, ainda, eventuais “proprietários de fato”, sendo que estes, para aqueles casos em que se usa uma pessoa ou mais para ficar à frente das formalidades legais, popularmente conhecidas como “laranja”.

Além desses, as pessoas com investidura pública que teriam autorizado o funcionamento, ou o espetáculo de forma isolada, sem as cautelas e seguranças de praxe. Do mesmo modo, o Poder Público pode ser responsabilizado, caso haja comprovação que a Boate Kiss recebeu o alvará de autorização de funcionamento sem cumprir com as exigências legais. Tal responsabilização é necessária, em face da possível inexistência de patrimônio suficiente, dos proprietários da Boate Kiss e dos demais responsáveis, para saldar as possíveis indenizações que os familiares buscarão, sendo que a responsabilização do ente público pode ser com base na omissão – no caso dos documentos formais estarem corretos e não houve fiscalização – ou por conduta ilícita dos agentes públicos – no caso de terem liberado o funcionamento sem o cumprimento das exigências legais.

2. Quais acusações específicas cabem aos proprietários, à banda, aos seguranças? Eles estariam sujeitos à quais penalidades?

Aparentemente, é caso de homicídio doloso, cuja competência para julgamento é o Juri Popular e, o local competente, é o local dos fatos, Santa Maria, RS. No caso em tela, seria o dolo eventual, ou seja, não tiveram a intenção de proporcionar a morte de alguém, mas assumiram o risco de produzir o resultado quando deram início a um espetáculo pirotécnico dentro do estabelecimento, que não passa de uma caixa fechada, com uma abertura apenas, utilizada para entrada e saída de pessoas e oxigênio. Veja-se que para existir o fogo são necessários três elementos, a saber, combustível, comburente e ponto de ignição. Sem qualquer deles não há fogo. No ocorrido na Boate Kiss, tenho pra mim que muitas pessoas perderam o sentido, desmaiaram, antes mesmo de sentirem o cheiro de fumaça. Digo isso porque, face a magnitude da violência de propagação do fogo, o oxigênio interno da boate, ou caixão fechado, foi consumido quase instantaneamente. Elas desmaiaram antes e vieram a óbito sem saber o que realmente estava acontecendo. Não sentiu dor ou outro sofrimento consciente. Já se tem notícias de que o uso da espuma para isolamento acústico, inflamável e tóxica, teria causado a morte da grande maioria das pessoas, sendo que se não fosse utilizado tal material, não se passaria de um incidente com poucos feridos. Esse fato leva a responsabilização penal dos proprietários por homicídio por dolo eventual.

3. Quais são as medidas legais que as famílias das vítimas podem tomar?

Embora não seja obrigado, elas podem contratar um advogado particular para auxiliar a promotoria no processo de acusação e júri, como assistente de acusação no processo penal. A sentença do processo penal proferida pelo Juízo pode fixar critérios mínimos de reparações às vítimas, porém, os familiares das vítimas não precisam aguardar o término do processo criminal para buscarem a responsabilidade civil dos responsáveis, podendo desde já ajuizar ação indenizatória.

4. Como funciona o processo de indenização?

O poder Judiciário tem que ser invocado, o que significa que a parte interessada, cônjuge supérstite, filhos, pais, ou outros familiares que se sentiram lesados serão, caso a caso, partes legítimas ativas (autores), mas tudo através de advogado constituído.

5. E quais são os valores cabíveis para esta situação?

São muito variáveis os valores na esfera das indenizações, devendo ser apurados individualmente calculando o prejuízo material efetivamente sofrido, além da indenização por dano moral, em que o valor será arbitrado à reunião dos seguintes critérios: valorização das circunstâncias do evento danoso (elementos objetivos e subjetivos da concreção) e o interesse jurídico. Muitas vítimas sustentariam as famílias após a formatura, o que pode também requerer a prestação de alimentos, com a duração provável que a vítima teria.

6. É preciso esperar uma ação coletiva do Ministério Público ou de outros órgãos, ou as famílias das vítimas podem entrar na justiça individualmente?

Na esfera penal, não, pois o delito é de “ação pública incondicionada”. As famílias não precisam tomar a iniciativa porque, nesse caso, o Estado avocou para si a ofensa e ele vai ofertar a competente denúncia e, recebida este pelo Juiz, instaura-se o processo penal cujo trâmite segue normal até o final. Quanto aos processos de indenização cada família deverá buscar individualmente através de ação judicial, sendo que a Defensoria Publica já ajuizou uma ação preparatória para indisponibilidade dos bens dos sócios da Boate Kiss, porém, tal ação somente é preparatória para futuras ações indenizatórias, que deverão ser ajuizadas individualmente, através de advogado constituído ou pela Defensoria Pública.

7. Caso os condenados não consigam arcar com os custos de possíveis indenizações, quem seriam os responsáveis pelo pagamento?

Somente as pessoas consideradas responsáveis pelo evento na Ação Indenizatória, assim como aos condenados criminalmente, são obrigados ao pagamento de possíveis indenizações. Isso quer dizer que somente o patrimônio que estiver no nome deles é que será utilizado para esse fim.

8. Qual o papel do estado nessa situação?

Basicamente são três. Um é punir os responsáveis. Outra, na esfera civil, após invocado pela parte interessada, é processar as pessoas tidas por responsáveis, quando se pleiteia alguma indenização, ou outro interesse civil. Por terceiro, rever a situação legal e fática dessas casas noturnas, com revisão e atualização das leis que regem a questão, bem como novas vistorias em tais locais. Isso deveria ocorrer em todo o Brasil e não apenas onde ocorre eventos fatídicos como o de Santa Maria.

9. O senhor acredita que esta tragédia pode gerar mudanças na legislação vigente?

Sem sombra de dúvida. O Estado é, de maneira rude, apenas hipotético, mas representado por pessoas, que representam a vontade de seus populares, ou pelo menos assim deveriam fazer. Pelo fato do incêndio em Santa Maria, ao que parece, está havendo uma mobilização nacional, com repercussão internacional, para reflexão e tomada de medidas acautelatórias para prevenir outras tragédias como essa.

 

Assuntos: Consumidor, Criminal, Danos materiais, Danos morais, Direito do consumidor, Direito Penal, Direito processual penal, Indenização

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