O julgamento por equidade nos processos civil e penal

05/11/2013. Enviado por

É permitido o julgamento por equidade no ordenamento jurídico nacional? Um breve apanhado sobre a matéria.

O direito substancial ou material consiste em normas em sentido estrito, de direito positivado, constante dos codex, impostas imperativamente à observância de todos, visando a sua concreção no mundo dos fatos jurídicos, que estabelece ou não uma sanção para que se venha a restaurar o status quo ante bellum, ou no mínimo, na tutela pelo equivalente, por isso diz-se que o direito objetivo, assim, considerado, é jus est norma agendi.

Uma norma stricto sensu pode ou não estabelecer uma sanção, na abalizada doutrina de Gofredo Telles Júnior, citado por Maria Helena Diniz, a lei é um imperativo autorizante. A lei não se caracteriza pela coerção, pois.. Porque, muito embora seja um comando, e um comando é uma norma revestida de sanção, no dizer de Caio Mário Pereira da Silva, estão sob o seu jus imperii, contudo, pode ser vulnerado ou violado por outrem. Nem toda norma, em sentido estrito, é um comando, pois, como dito, linhas acima, nem toda lei possui uma sanção. Este é o caso, verbi gratia, do art. 1.694, da Lei nº 10.406/02. O dispositivo legal não estabelece uma sanção, todavia uma obrigação legal, o dever de alimentar.

À capacidade ou à faculdade de agir, reagindo ao que açambarca o direito posto, para que, através do jus imperii, seja mantida a integridade do ordenamento, na doutrina de José Roberto dos Santos Bedaque, quando vulnerada ou violada, chama-se direito subjetivo. Por isso, diz-se que, neste caso, o direito material violado, que faz nascer o direito subjetivo público de ação, diz-se jus est facultas agendi.

O direito subjetivo público de ação, para muitos ainda é meramente instrumental. Porém, para o doutrinador Luiz Guilherme Marinoni,  o juiz em sendo imparcial, com fundamento no primado da imparcialidade do juiz, não significa deva o juiz ser neutro. Mas, pôr-se equidistante das partes, de modo que esta imparcialidade não sendo neutralidade, o processo seria, por conseguinte, não mais mero instrumento do direito material, mas sem autonomia deste.

No entanto, ainda prevalece a opinião, segundo a qual o direito processual é um mero instrumento do direito material, eis que, como direito fundamental, tem por escopo resguardar um direito substancial, fulcrado na improcedência do pedido ou não.

Pois bem. A distinção, acima, faz-se mister, para que se possa desenvolver, brevemente, o motivo do presente artigo: o julgamento por equidade. Ora, está adstrito o magistrado, detentor do jus imperii do Estado, isto é o Estado-juiz, investido constitucionalmente de jurisdição, o que abarca o princípio do juiz natural, previsto constitucionalmente, o que envolve os direitos-garantias de não poder haver juízo ou tribunal de exceção, assim como o direito básico de ser julgado por um juiz competente para a causa, - é o que decorre da simples leitura do cotejado no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição da República -  às prescrições legais? Dizem respectivamente os incisos cotejados: “não haverá juízo ou tribunal de exceção;” e “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente

É de sabença basilar que nos sistemas jurídicos que praticam a “common law”, como os sistemas estadunidense (o realismo americano) e inglês, os precedentes são tomados como paradigmas para casos semelhantes, é o chamado julgamento por equidade (equity). Não estando o magistrado jungido a proclamar a letra fria da lei, mas o seu espírito para diversos casos semelhantes. Não se trata de lacuna, pois no nosso sistema positivado não se admitem lacunas, devendo o juiz julgar, não podendo se escusar, nos casos e formas legais, de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, nos termos do art. 126, 1ª parte da Lei nº 5.869/73 e do art. 4º, da Lei nº 4.657/42 (Lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro). Predeterminam os artigos de lei retronarrados o seguinte, respectivamente: “o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei”; e “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Logo, no Brasil, o magistrado está adstrito a julgar com base na lei, aplicando o seu espírito (interpretação teleológica – art. 5º, da Lei nº 4.657/42 “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”), mas jungido ao que diz a lei (art. 126, segunda parte, da Lei nº 5.869/73 - “no julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais”), não aplicando a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, a não ser em caso de lacuna ou obscuridade. Naqueles sistemas, o julgamento do espírito das leis atende ao princípio da equidade. Pois os precedentes são parâmetros para julgamentos de outros casos.

No entanto, no nosso sistema jurídico, quando estará o juiz autorizado a julgar por equidade? Ora, no processo civil, está o juiz autorizado a julgar por equidade nos casos previstos em lei. É o que advém do contido no dispositivo legal do art. 127, da Lei nº 5.869/73, que assim disciplina: “ o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”. Isto é, em caso de lacuna ou obscuridade, como previsto nos dispositivos alhures narrados. E exempli gratia, erigido à categoria de princípio, nos casos de defesa do consumidor, inserto no art. 4º, da Lei nº 8.078/90, na lição da doutrina de Luiz Fernando Nigro Corrêa e Osíris Leite Corrêa “pretende que haja um equilíbrio entre os direitos e obrigações dos contratantes da relação de consumo, na busca da justiça contratual. Outros, todavia, não consideram a equidade um verdadeiro princípio, dizem aqueles doutrinadores, citando César Viterbo Matos Santolim, mas, sim, uma técnica interpretativa, “a ser utilizada, de modo a construir a adequada argumentação para legitimar a aplicação do direito””.

Outro exemplo, reside no art. 11, nº II, da Lei nº 9.307/96, dispondo que “o julgamento arbitral poderá conter a autorização para que o árbitro ou árbitros julguem por equidade, se assim for convencionado pelas partes”. Este exemplo é exceção ao jus cogens. Porque pode ser objeto de derrogação por vontade das partes, ou seja, transacionável.

Mas, elencados os casos em que o juiz deve julgar por equidade, quais são os critérios a serem seguidos? Nos ensina a doutrina de Vicente Ráo que há um conceito romano e moderno de equidade. No primeiro distinguia-se a equidade natural (aequitas naturalis) da equidade civil (aequitas civilis) “definindo a primeira como uma forma de justiça absoluta, que o direito constituído procura alcançar, e a segunda como parte integrante deste direito, aplicada em Roma, precipuamente pelos pretores (aequitas praetoris) (equidade pretoriana).”

Continua o preclaro doutrinador: “A aequitas naturalis, segundo essa concepção, inspira o direito e em direito tende a transformar-se;a aequitas civilis, incorporada ao direito positivo, da natureza deste participa.”

O conceito moderno, segundo Vicente Ráo, é um atributo do direito, conferido pelo legislador (nosso sistema) ou pelo juiz ao aplicá-la(sistema da “commom law”). Em sendo um atributo do direito, as decisões não podem ser contra legem. Ope legis, porém.

A equidade influi não só nos julgamentos, mas também na elaboração das leis. A equidade nos julgamentos, motivo do artigo, se dá por discricionariedade, ope judicis. Ora, mas na profícua opinião de José Roberto dos Santos Bedaque, o juiz não perscruta a conveniência e a oportunidade, até por que não foi deixada uma margem de escolha ao magistrado, como é deixada ao administrador. O juiz deve sim se ater ao prescrito em lei e, em caso de lacuna ou obscuridade, se adstringir aos princípios gerais de direito, costumes e analogia. Tudo de acordo com o princípio da correlação ou da congruência, inserido nos arts. 128 e 460, da Lei nº 5.869/73, sob pena de julgamento extra petita, citra petita ou ultra petita, limites da equidade.

Segundo Vicente Ráo o julgamento por equidade se assenta sob três regras fundamentais:

1- por igual modo devem ser tratadas as coisas iguais e desigualmente as desiguais;

2- todos os elementos que concorreram para constituir a relação sub judice, coisa, ou pessoa, no tocante a estas tenham importância ou sobre elas exerçam influência, devem ser devidamente consideradas; e

3- entre várias soluções possíveis deve-se preferir a mais suave e humana, por ser a que melhor atende ao sentido de piedade, e de benevolência da justiça: jus bonum et aequum.

Segundo Vicente Ráo “a rigidez da fórmula, transmitindo-se à aplicação do direito, não emendaria, ademais, os erros em que o legislador houvesse incorrido, causando a desigualdade que os princípios condenam; e semelhante rigor no trato das relações jurídicas, violaria, ainda a humanitas (humanidade), a benignitas(benignidade), a que a justiça deve atender”. Tudo para a mantença da ordem social.

No que tange a elaboração das leis, as leis devem ser justas, por critérios de legitimação interna e/ou externa. Pois estes, não raras vezes, são derivadas dos preceitos daquelas. Sendo assim, devem ser honestas, ou seja, atentarem para o princípio da razoabilidade. Pois, non omne quod licet honestum est. Não estaria, assim, o magistrado criando leis? Ora, se existe uma lei do juiz, esta lei - nova norma jurídica-, é a sentença, que faz lei entre as partes as quais é dada, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas (art. 468, da Lei nº 5.869/73), julgada total ou parcialmente a lide.

Diante de leis obsoletas, que não se adequam a contingência social, ensina Vicente Ráo “melhor será considerar-se a lei inadaptável ao caso concreto, por dissonância com os elementos de fato e socorrer-se, para a solução do conflito, das demais fontes de direito”.

Portanto, segundo este doutrinador o conceito de equidade em nosso sistema jurídico é: “designa-se por equidade uma particular aplicação do princípio da igualdade às funções do legislador e do juiz, a fim de que, na elaboração das normas jurídicas e em suas adaptações aos casos concretos, todos os casos iguais, explícitos ou implícitos, sem exclusão, sejam tratados igualmente e com humanidade, ou benignidade, corrigindo-se, para este fim, a rigidez das fórmulas gerais usadas pelas normas jurídicas, ou seus erros, ou omissões”.

E, no processo penal, cabe aplicação analógica do art. 127, da Lei nº 5.869/73, por força do disposto no art. 3º, da Lei nº 3.689/41? Ora, é cediço que não. Senão vejamos!

No processo penal vigoram princípios que hoje no evolver das legislações, supraconstitucionais, erigiram-se a direito-garantia, do direito constitucional pátrio, os adágios latinos consistentes nos princípios da legalidade, e seus corolários, os da reserva legal ou da anterioridade da lei penal, sobre o tipo penal e a pena cominada e, no postulado, infraconstitucional, da legalidade estrita. Inseridos aqueles, no ordenamento jurídico nacional, no art. 5º, incisos II e XXXIX, da Magna Carta e, este, no art. 14, inciso I, do Decreto-lei nº 2.848/40.

Dizem os dispositivos legais, nesta ordem: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;  não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; e diz-se o crime consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal.” 

O princípio da reserva legal se explicita nas máximas latinas nulla poena sine praevia lege, nullum crimen sine praevia lege.

A teor do sistema da teoria do garantismo penal, de Luigi Ferrajoli, vige o aforismo nulla poena sine judicio; logo, o processo penal está garantido pelo direito - garantia do devido processo legal, o chamado devido processo penal, na doutrina de Rogério Lauria Tucci, insculpido no art. 5º, inciso LIV, da Lex Maxima, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Ora, no processo penal o princípio da humanidade é aplacado e mitigado, tendo em vista não a equidade, e por força do princípio implícito da taxatividade, corolário da reserva legal, a humanitas “consiste em privilegiar a benevolência e a complacência, como formas de moldar o cidadão, desde o berço até a morte”, no dizer de Guilherme de Souza Nucci. Está, por via de consequência, sob julgamento o jus libertatis do acusado frente ao jus puniendi do Estado. A liberdade é a regra, a prisão, a exceção. Logo, é de se concluir, que não cabe julgamento por equidade, tendo em vista a analogia e os costumes. Não cabendo a analogia legis, nem a analogia juris, ex vi do princípio da reserva legal e do primado da legalidade estrita. Cabendo, tão-só a aplicação analógica, interpretação extensiva e o suplemento, na lei processual penal, dos princípios gerais de direito, com base no art. 3º, da Lei nº 3.689/41. E não, no que tange ao direito material, no prescrito no Decreto-lei nº 2.848/40.

A equidade, pois, vige com absoluta previsão legal no processo civil, enquanto que no que pertine ao direito material penal, somente se permite o suplemento dos princípios gerais de direito no direito processual. Sendo este daquele dependente, e não mero apêndice, face a diretriz da imparcialidade do juiz, no dizer de Luiz Guilherme Marinoni.

 

Bibliografia

Curso de Direito Civil Brasileiro – vol. I – DINIZ, Maria Helena

Instituições de Direito Civil – vol. I – PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira

Poderes Instrutórios do Juiz – BEDAQUE, José Roberto dos Santos

Código de Defesa do Consumidor -  Aspectos Relevantes – CORRÊA, Luiz Fernando Nigro e CORRÊA, Osíris Leite

Técnica Processual e Tutela dos Direitos – MARINONI, Luiz Guilherme

O Direito e a Vida dos Direitos – RÁO, Vicente

Direito e Razão – A teoria do garantismo penal – FERRAJOLI, Luigi

Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro – TUCCI, Rogério Lauria

Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais – NUCCI, Guilherme de Souza

Por KARLA CHRISTINA FARIA DE ALMEIDA, advogada.

Assuntos: Criminal, Direito Civil, Direito Penal, Direito processual civil, Direito processual penal

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