União homoafetiva e a interpretação do artigo 1.597 do Código Civil

04/12/2012. Enviado por

Não reconhecer as novas famílias constituídas, é vedar a proteção jurídica do Estado, o que vai de encontro ao sistema constitucional vigente, onde a dignidade da pessoa humana e o impedimento de qualquer tipo de discriminação servem como norte.

1. Entidades Familiares

 

O ordenamento jurídico brasileiro, antes do advento da Carta Magna de 1988, indo explicitamente de encontro à realidade social, apenas reconhecia como entidade familiar aquela família clássica, instituída a partir do casasmento. Famílias as quais não seguissem o modelo exclusivo estavam longe de serem reconhecidas pela legislação pátria, podendo, quando muito, vim a constituir uma sociedade de fato, em cuja seriam debatidos só os interesses patrimoniais dos envolvidos, afastando qualquer remissão ao Direito de Família[1].

Sob o ponto de vista de outras ciências - como antropologia, sociologia, psicologia, psicanálise, dentre outras – havia uma maior abrangência no tocante ao conceito de família, uma vez que não consideravam apenas aquela delimitada pelo modelo abstrato trazido pela lei.

Nas pesquisas anuais e regulares, o próprio IBGE considerava família não somente as constituídas pelo casamento, mas qualquer unidade de vivência, o que revelou, na experiência brasileira, um perfil das relações familiares diferenciado do parâmetro legal à época.

A partir da Constituição Federal de1988, adistribuição do direito de família, a qual estava relacionada ao casamento como principal protagonista, perdeu força. Contrapôs-se ao autoritário e exclusivo modelo do Código Civil de 1916 o modelo igualitário da família constitucionalizada, ressaltando-se como fundante conseqüência a atribuição de efeitos jurídicos próprios de direito de família às demais entidades familiares.

Inovou a Constituição brasileira, ao reconhecer não apenas a entidade familiar matrimonializada, mas também outras duas, de maneira expressa, quais sejam: a união estável e a entidade monoparental, além de, mediante uma interpretação extensiva e sistêmica, haver a possibilidade de incluir as unidades familiares implícitas, como é a união homossexual.

Em matéria do direito de família constitucionalizado, enfatiza-se o princípio geral da dignidade da pessoa humana, o qual aponta os rumos do, mais próximo ao mundo dos fatos.

Deste princípio decorrem os da liberdade à constituição das relações familiares[2] e do pluralismo democrático das entidades familiares. Isto é, há diversas unidades de vivência na sociedade, devendo todas ser respeitadas como tais, sem preconceitos ou discriminações.

Todavia, faz-se necessária a reunião de três características em comum (afetividade, estabilidade e convivência pública e ostensiva) a fim de se configurar uma entidade familiar como bem diria Paulo Lôbo,

Afetividade é vista como um princípio o qual fundamenta o direito de família no que tange a estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico, resultado da crescente evolução da família brasileira. O que não pode ser confundido com afeto, o qual é fato psicológico, irrelevante ao mundo jurídico, uma vez que se presume até mesmo quando for inexistente na realidade das relações; para o direito, parte-se do pressuposto que se existe convivência, é porque há o afeto.

É a estabilidade a característica a qual vem excluir, do âmbito de constituição de uma entidade familiar, os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem a mínima comunhão de vida. Frisa-se que não está se falando de tempo de convivência, porém do comprometimento afetivo entre os pares.

Não basta tão-somente existir estas características em uma unidade de vivência, faz-se fundamental que esta relação seja notória perante os que componham o meio social onde vive a pretensa família. Ou seja, pressupõe-se uma unidade familiar que se apresente como tal ao público.

Logo, nota-se que a constituição da família é o objetivo da entidade familiar, o que a diferencia de outros relacionamentos afetivos, como as relações religiosas. Por serem objetivas, as características tornam facilmente perceptível a configuração de uma família, o que é aferido independentemente da intenção das pessoas que as integram.

Atente-se quais entidades familiares a Lei Maior reconhece a proteção especial do Estado. Explicitamente a Constituição refere-se às estabelecidas pelo casamento ou pela união estável, além da entidade monoparental (integrada por um dos pais e seus filhos menores).

Não obstante, analisando o artigo 226 da Carta Magna e seus parágrafos, alcança-se a inclusão das entidades familiares não referidas explicitamente. In verbis:

 

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 4 º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

 

É o art.226 acláusula geral de inclusão das entidades familiares implícitas, não sendo admissível excluir qualquer entidade a qual preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e notoriedade. Complementando a cláusula geral, a regra do parágrafo quarto usa o termo “também” ( significando da mesma maneira, da mesma forma, igualmente) que, de fato, inclui, sem exclusão das demais entidades.

Com a interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais, aliada ao conhecimento do “princípio da máxima efetividade” ou “princípio da interpretação efetiva”, desenvolvido por Gomes Canotilho, - afirma, em suma, que para uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que lhe dê maior eficácia, - chega-se à referida inclusão.

Deve o intérprete, ao se deparar com preceitos constitucionais, prestar o máximo de atenção a fim de, existindo alguma dúvida, escolher a hermenêutica que reconheça maior eficácia a norma constitucional.

Examina-se o art. 226 da Constituição brasileira, no caso em tela, dando preferência ao sentido que atribui o alcance de inclusão de todas as entidades familiares, já que confere maior eficácia aos princípios de “especial proteção do Estado” (caput) e de tutela da dignidade “de cada um dos que a integram” (§ 8º).

Cabe dizer que é apenas admitida discriminação quando a própria norma, de forma expressa, dispõe. Não levantada qualquer discriminação por parte do constituinte, não cabe ao intérprete ou ao legislador fazê-la[3].

No momento em que alcançarem as características necessárias à constituição de família, desta sorte, as uniões homossexuais devem ser consideradas entidade familiar constitucionalmente protegida, pois não se veda tal relacionamento na Lei Maior.

Ao apreciar os casos concretos, com a força dos conflitos humanos que não podem ser desmerecidos por convicções ou teses jurídicas inadequadas, o Superior Tribunal de Justiça tem sucessivamente afirmado o conceito ampliado e inclusivo de entidade familiar.

 

2. Equivalência entre União Homoafetiva.e União Estável

 

Reconhece a Constituição Federal a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar (art. 226, § 3º). Não obstante, posto que seja o Direito essencialmente dinâmico, devendo estar em constante evolução, é fundamental que perceba as transformações da sociedade, à qual é dirigido.

Caracterizados relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, resultando na chamada união homoafetiva, esclarecido o intuito de constituição de família, evidenciam-se fatos os quais geram conseqüências jurídicas, já que a Carta Cidadã dispõe que todos são iguais, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput), cabendo a adequação do mundo dos fatos ao mundo do Direito, através de instrumentos como a analogia, os costumes e os princípios gerais, quando houver a omissão do legislador.

Afirma Maria Berenice Dias[4]:

Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio estável caracterizado pelo amor e pelo respeito mútuo, com o objetivo de construir um lar, inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes, gera direitos e obrigações que não podem ficar à margem da lei.

As uniões estáveis homossexuais não podem ser ignoradas, não se tratando de um fato isolado, ou de frouxidão dos costumes como querem os moralistas, mas a expressão de uma opção pessoal que o Estado deve respeitar.”.

O compromisso de chegar à justiça tem levado a percepção mais atenta das relações de família, prestigiando, por exemplo, a parentalidade afetiva como elemento identificador da filiação; afastando-se, portanto, o o determinismo biológico (onde prevalece o fator genético). Apesar da omissão do legislador, o Poder Judiciário, aos poucos, mostra-se sensível a essas mudanças sociais, equivalendo as uniões de pessoas do mesmo sexo à união estável.

A Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – composta à época pelos desembargadores: José Carlos Teixeira Giorgis (relator) e Luiz Felipe Brasil Santos, bem como a desembargadora Maria Berenice Dias – manteve, de forma unânime, a decisão da Primeira Instância, que reconheceu como se estável fosse a união entre duas mulheres, além de determinar a partilha dos bens adquiridos ao longo da relação, devido ao fim do relacionamento (meação).

Narra os autos, em suma, que as duas conheceram-se em um bar e algum tempo depois passaram a morar juntas, relacionamento que durou entre janeiro de 1997 e agosto de 2001.

Considerou o relator que estavam presentes as características para a constituição de uma entidade familiar, equivalendo-a a união estável. Ao se caracterizar a união estável, com supedâneo no Código Civil, os bens adquiridos na constância da relação pertencem a ambas conviventes, não havendo, na dissolução, necessidade de prova do esforço comum na aquisição de bens, sendo aplicado às relações patrimoniais, a não ser quando há contrato escrito entre os companheiros, o regime de comunhão parcial de bens[5].

A doutrina aponta os direitos fundamentais como o baluarte para a aceitação das uniões homossexuais em nosso sistema jurídico, mormente os previstos no art. 5º da Constituição Federal, tais quais os que garantem a liberdade, a igualdade sem distinção de qualquer natureza, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Estas normas seriam, consoante Luiz Edson Fachin, “a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual como direito personalíssimo, atributo inerente à pessoa humana”; dissolvendo – pois – a névoa de hipocrisia a qual encobre a negação desses efeitos jurídicos.

A legislação pátria ainda não disciplinou os efeitos jurídicos à união homoafetiva, devendo aplicar, por analogia, as regras referentes à união estável, pois esta é a entidade familiar com maior aproximação quanto à estrutura (lealdade, respeito, assistência mútua, regime de bens, impedimentos e, também, adoção e filhos). O efeito prático é o mesmo.

 

3. União Homoafetiva e a filiação presumida

 

Pois bem, a presunção de filiação prevista no art. 1.597, do Código Civil, aplicada à união estável, pode ser usada para regular os efeitos das uniões homoafetivas.

Concernente à filiação, demonstra-se, até então, biologicamente impossível a concepção de um embrião a partir de gametas de pessoas do mesmo sexo. Com fito de atender seus anseios quanto à paternidade/maternidade, os companheiros homoafetivos podem recorrer à adoção, à fecundação artificial heteróloga ou à maternidade substituta (acompanhada da técmica denomina fecundação in vitro – FIV).

Maia Berenice Dias[6] assevera que se o ordenamento jurídico brasileiro permite a adoção à união estável, da mesma sorte, um par homoafetivo possui a mesma possibilidade de adotar uma criança que um casal hetero, pensamento que já possui amparo jurisprudencial.

 

"APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." (APELAÇÃO CÍVEL SÉTIMA CÂMARA CÍVEL Nº 70013801592 COMARCA DE BAGÉ/RS - DESA. MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Apelação Cível nº 70013801592, Comarca de Bagé: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." Julgador(a) de 1º Grau: MARCOS DANILO EDON FRANCO).

 

Pesquisas científicas demonstram que a orientação sexual dos pais não importa ao desenvolvimento da criança e do adolescente.

Entretanto, surge a grande dúvida em relação à presunção de filiação quando da inseminação artificial heteróloga, prevista no art. 1.597, V, do Código Civil, vejamos.

 

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

 

Neste diapasão, torna-se perfeitamente admitida a aplicação do artigo supra às relações constituídas pela união estável. Por serem entidades familiares equivalentes, cabe à união homoafetiva o mesmo trato.

Destarte, em uma união estável de pessoas do mesmo sexo, presume-se a filiação, quando concebido na constância do relacionamento se houver prévia autorização do par afetivo.

Considerações finais

 

Diante das evidentes modificações ocorridas no direito de família pátrio, em meio às constantes transformações da moderna sociedade, a pluralidade das entidades familiares, indo além das explicitamente previstas na Carta Cidadã, é um fato que o legislador não pode continuar fechando os olhos.

Assim, não reconhecer as novas famílias constituídas, é vedar a proteção jurídica especial do Estado, o que vai de encontro ao sistema constitucional vigente, onde a dignidade da pessoa humana e o impedimento de qualquer tipo de discriminação servem como norte. As famílias formadas por duas pessoas do mesmo sexo, que constituem uma relação de convivência afetiva, preenchedora dos requisitos já tratados: afetividade, estabilidade e convivência pública e ostensiva, possuem o direito à proteção legal.

Até o legislador abrir os olhos ao que acontece ao mundo dos fatos, pode-se atribuir à família homoafetiva, analogicamente e de forma transitória, o mesmo tratamento jurídico dado à união estável, com os direitos e obrigações inerentes.

Não pode o operador do direito dá-se o luxo de ignorar esta situação, haja vista valores ético-morais preconceituosos por ele defendidos. Tal qual todo cientista, deve utilizar-se da razão, de forma mais imparcial possível, a fim de solucionar os problemas a ele apresentados. Nada justifica que esses pares homoafetivos sejam impedidos de exercer a maternidade ou a paternidade.

Ainda hoje, infelizmente, a parte mais conservadora da sociedade ainda reage de forma preconceituosa, acreditando que, caso seja criada por homossexual, a criança também terá desejo por pessoa do mesmo sexo. Pior ainda, há os que defendem cegamente, sem nenhum embasamento científico, que, num lar homoafetivo, o adotado será abusado sexualmente pelos ascendentes de primeiro grau.

Contrariando esse entendimento, estudos científicos e relatórios feitos em todo o mundo, como Estados Unidos e Holanda, revelam que esses paradigmas estão totalmente equivocados, provando por “A” mais “B” que não procedem.

Mesmo que timidamente, a jurisprudência pátria tem começado a se mostrar sensível à necessidade do reconhecimento do direito da adoção homoparental, além de demonstrarem esboços para que, em um futuro próximo, aceitem a presunção de filiação prevista no art. 1.597, do Código Civil. Avanço este necessário a um país que prega o respeito aos direitos humanos, sobretudo, à dignidade da pessoa humana.

Nota-se que o primeiro passo à mudança do pensamento da parte mais conservadora da sociedade já foi dado, vês que os jovens juristas em formação, futuros operadores do direito, têm a oportunidade de discutir tão polêmica questão.

Certamente, por ser expressão da sociedade, a cultura também se transforma, evolui, o que causa efeitos diretos à ciência reguladora dos fatos humanos. Logo, espera-se que em futuro próximo, sejam afastados os óbices para o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, além de propiciar aos homoafetivos todos os direitos inerentes à personalidade, já reconhecido pela inovadora Constituição. Amparo constitucional existe, falta aos operadores do direito sensibilidade para tratar da questão. 



[1] Consoante Paulo Lôbo, “o direito de família é um conjunto de regras que disciplinam os direitos pessoais e patrimoniais das relações de família” (Lôbo, P. Família/Paulo Lôbo – São Paulo: Saraiva, 2008. – Direito Civil).

[2] C. Massimo Bianca, tendo em conta o sistema jurídico italiano, ressalta o princípio da liberdade, pois a "necessidade da família como interesse essencial da pessoa se especifica na liberdade e na solidariedade do núcleo familiar". A liberdade do núcleo familiar deve ser entendia como "liberdade do sujeito de constituir a família segundo a própria escolha e como liberdade de nela desenvolver a própria personalidade” (Diritto Civile, v.2, Milano, Giuffrè, 1989, p. 15.)

[3] Já dizia Paulo Lôbo, em seu artigo, “Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do “numerus clausus!”: A exclusão não está na Constituição, mas na interpretação.

[4] União homossexual – Aspectos sociais e jurídicos. Disponível em: www.iobonlinejurídico.com.br

 

 

[5] Processo nº 70005488812. Decisão proferida aos 25 de junho de 2003, Disponível no site: http://tj.rs.gov.br/site_php/noticias/mostranoticia.php?assunto=1&categoria=1&item=13384

[6] DIAS, Maria Berenice.Adoção Homoafetiva e companheiros homoafetivos no registro civil do menor. Disponível em: <http://www2.oabsp.org.br/asp/comissoes/crianca/artigos/04.pdf >

Assuntos: Direito Civil, Direito de Família, Direito processual civil, Direitos homoafetivos

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