Cessão de direitos hereditários de bem individualizado

22/08/2012. Enviado por

O Código Civil permite a cessão de direitos hereditários de bem individualizados em apenas algumas ocasiões e respeitados alguns requisitos. O presente estudo tratará de algumas particularidades e a aplicabilidade prática do instituto

O ordenamento civil brasileiro prevê a cessão de direitos hereditários em seu artigo 1.793. Sua concretização poderá se dar total ou parcialmente e a cessão será sempre do montante ideal, limitado àquilo que é cabível ao cedente, ou seja, sua quota parte na sucessão legítima ou testamentária. A grosso modo, vende-se o direito de herdar, há uma sub-rogação do herdeiro pelo cessionário.

Com peculiaridades próprias, este tipo de negócio jurídico não pode ser celebrado a qualquer tempo, ele tem data certa, porém imprevisível, de início e de fim. Há um ínterim no qual pode ser celebrado, que se dá com a abertura da sucessão até a ultimação da partilha.

Nota-se que, se celebrado antes da sucessão, seria considerado pacto sucessório, vedado de pleno direito pelo ordenamento, pois não se pode ter por objeto de um contrato a herança de pessoa viva. Caso fosse celebrado após a partilha, esta alienação seria considerada venda ou doação, uma vez que o vocábulo “cessão” só se aplica à transmissão de bens incorpóreos[1].

No ato da lavratura, deve o tabelião observar e fazer constar claramente se a cessão é feita a título gratuito ou oneroso, assim como observar se ela é total ou parcial. Esta discrição é fundamental para o recolhimento do imposto de transmissão. Caso seja um ato gratuito, recolher-se-á ITCMD pelo Estado; caso seja um ato oneroso, recolher-se-á ITBI pelo Município.

Como intermediador de negócios jurídicos que é, e em homenagem ao Princípio da Justiça Preventiva[2] e da Segurança Jurídica, o Notário tem o dever de instruir e informar aos interessados a respeito de seus direitos e obrigações, agindo como um legítimo mediador e evitando eventuais conflitos, bem como deve providenciar todos os documentos exigidos por lei e pelo Código de Normas (art. 713[3]).

No entanto, na prática hodierna, o Tabelião de Notas depara-se com pretensões de herdeiros desavisados que buscam uma cessão de direitos hereditários de bem individualizado do espólio ou até mesmo a “renúncia em favor de”, também conhecida como renúncia translativa.

Porém, nossa legislação civil veda de maneira relativa tal procedimento, por ser o acervo hereditário considerado, abstratamente, um todo indivisível (art. 1.791 e seu Parágrafo único[4], do CC) e imóvel (art. 80, II do CC), do qual todos os herdeiros são condôminos. Este estado de indivisão perdura até o momento da partilha, quando cada sucessor passa a ter autonomia para administrar o patrimônio que lhe cabe.

Nota-se que, mesmo um espólio composto apenas por bens móveis, será considerado imóvel para efeitos legais, necessitando de forma solene para sua alienação, escritura pública, precedida de outorga do cônjuge (exceto no regime da separação de bens), lembrando que, a teor do disposto no artigo 166, IV do Código Civil, a inobservância destes procedimentos ensejará a anulação do negócio jurídico e suas consequências poderão se estender por anos e anos, uma vez que o prazo decadencial para propositura da ação de anulação do negócio celebrado vigorará até dois anos após o termino da sociedade conjugal. Por outro lado, esta autorização poderá se dar por instrumento público ou particular, desde que autenticado.

Tal vedação encontra amparo legal no artigo 1.793, §§ 2º e 3º do Código Civil ao determinar que “o direito a sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o coerdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública,mas é ineficaz a cessão, pelo coerdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente, assim como também será ineficaz a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente de indivisibilidade[5]”.

O Superior Tribunal de Justiça, especificamente a Ministra Nancy Andrighi, proferiu o seguinte voto em julgado de 02/02/2006, o qual transcreve-se em parte:

“Quanto à alegação dos recorrentes de ser inviável o registro da cessão de direitos hereditários, de fato, enquanto não ultimada a partilha, o referido negócio não poderia ser levado a registro, pois só no momento da partilha é que se determina e especifica o quinhão de cada herdeiro e, automaticamente, o objeto da cessão.

Enquanto não houver partilha dos bens, o cessionário detém apenas direito expectativo, que só irá se concretizar efetivamente após a especificação do quinhão destinado ao herdeiro cedente”.

Entretanto, “nada obsta a que o cedente especifique um bem como integrante de sua quota-parte, mas tal especificação não obriga aos coerdeiros. Se estes concordarem com a cláusula aposta no instrumento de cessão, pode acordar que o bem especificado faça parte da quota que caberia ao cessionário, mas não estão obrigados a fazê-lo, exceto por cortesia[6]”.Os tribunais, por sua vez, consideram o negócio válido, embora sua eficácia ficasse condicionada à efetiva atribuição do ao imóvel ao herdeiro cedente.

Todavia, o Código Civil admite a cessão de bem individualmente considerado, desde que precedida de autorização judicial. Uma vez permitida, o valor da alienação deve ser descontado da quota-parte cabível ao herdeiro, mesmo que para deferi-la o magistrado tenha que ouvir os demais coerdeiros, o que deve, por bem, fazer.

O Art. 16 da Resolução 35 do CNJ, diz que “é possível a promoção de inventário extrajudicial por cessionário de direitos hereditários, mesmo na hipótese de cessão de parte do acervo, desde que todos os herdeiros estejam presentes e concordes”. Assim, uma vez tendo anuência de todos os herdeiros a alienação de bem individualizado poderia ocorrer sem autorização judicial. Isto por que a lei civil apenas veda a alienação por coerdeiro não vedando, porém a alienação feita por todos eles em conjunto, sendo o ato válido independente de autorização judicial. Não obstante, deve também o cônjuge meeiro comparecer à escritura pública na qualidade de “cedente” dos direitos relativos à meação, ou à quota parte que lhe tocar na herança, conforme o caso e o regime de bens em que era casado.

Esta regra tem sua razão de ser, pois com o advento da Lei 11.441/07, o “juiz” passa ser o notário, que com o consentimento dos demais herdeiros poderá singularizar o quinhão hereditário através da escritura pública. Ora, se houver a necessidade do juiz togado, perde a razão de ser a desjudicialização do inventário consensual, proposto pela legislação federal acima.

Esta regra tem sua razão de ser, pois com o advento da Lei 11.441/07, o “juiz” passa ser o notário, que com o consentimento dos demais herdeiros poderá singularizar o quinhão hereditário através da escritura pública. Ora, se houver a necessidade do juiz togado, perde a razão de ser a desjudicialização do inventário consensual, proposto pela legislação federal acima.

Outra hipótese é caracterizada pela venda pelo próprio espólio, e não por um só herdeiro, de bem singularmente considerado, visando o pagamento do imposto de transmissão, dívidas do espólio, despesas com advogados e inventários etc, e também deverá ser precedida de autorização judicial. Neste caso, a quantia que restar, após o abatimento das despesas, integrará o monte-mor, e será partilhado da mesma forma que os demais bens do acervo.

Além dos fatos ao norte expostos, o cessionário não será beneficiado apenas com o ativo. Como dito em linhas anteriores, ele se sub-rogará nos direitos do cedente, incluindo também o passivo. Essa sub-rogação somente não tem lugar no caso de acréscimo ou substituição após a realização da Cessão, por expressa previsão do §1º do artigo 1.793, ainda assim, desde que não prevista anteriormente.

Assim, via de regra, a cessão de direito hereditário deverá ser feita de forma genérica, apontando qual percentual da cota está sendo alienado, por exemplo, 100% (ou menos) daquilo que cabe a determinado herdeiro. Sendo ele o único herdeiro e fazendo cessão total de seus direitos, a escritura adjudicatória poderá ser lavrada tendo como único interessado o cessionário, caso contrário o ato deverá ter todas as partes presentes ou devidamente representadas.

Ultimada os ritos de praxe, incube ao cessionário se apresentar nos autos do inventário registrando sua respectiva carta, caso o bem seja efetivamente atribuído ao herdeiro cedente.

Portanto, a pretensão de se alienar bem singular componente de espólio não encontra expresso amparo legal, porém esta possibilidade não é descartada pela doutrina e jurisprudência. Assim, somente precedida de autorização judicial e anuência de todos os herdeiros e eventual cônjuge sobrevivo o ato terá plena eficácia. Por assim dizer, deve o tabelião de notas se atentar às minúcias do ato, não lavrando e tampouco permitindo o ingresso deste tipo de cessão nos inventários caso não estejam em consonância com os entendimentos acima expostos, devendo orientar seus usuários e preservar, acima de tudo, a lisura dos negócios jurídicos do qual faz parte.

Autor: BRUNO BITTENCOURT BITTENCOURT

Referência:

CASSETTARI, Christiano. Revista Fé Publica. Ano II – nº 14. A impossibilidade d Cessão de Direitos Hereditários de Bens Singulares. p. 28-29. Dezembro 2011.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 7 : direito das sucessões – 5 ed. – São Paulo – Saraiva, 2011

LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos. Teoria e Prática. – 2. ed. – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : Método, 2011.

NERY JUNIOR, Nelson. Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil Comentado e Legislação Extravagante. 3 ed. Revista dos Tribunais. São Paulo : 2005.

MIRANDA, Jeferson. Manual Prático do Tabelião de Notas. Espírito Santo, 2007.



[1] Carlos Roberto Gonçalves, p. 55.

[2] “Embora ainda praticamente desconhecido e pouco discutido em nosso país, este princípio pode ser inferido do próprio artigo 1º. Da Lei 8.935/1994, como pressuposto da segurança jurídica (sem paz social não há estabilidade jurídica) e de leis especiais”. Luiz Guilherme Loureiro, p. 491.

[3] Art. 713. Na lavratura da escritura nos casos de inventário e partilha, deverão ser apresentados, dentre outros, os seguintes documentos, observando-se, no que couber, o disposto no art. 79, inciso III, alínea “c”, deste Código de Normas: I – certidão de óbito do autor da herança; II – RG e CPF das partes e do autor da herança; III – certidões do registro civil comprobatórias do vínculo de parentesco dos herdeiros; IV – certidão de casamento do cônjuge sobrevivente e dos herdeiros casados, e pacto antenupcial, se houver; V – certidão do registro de imóveis de propriedade e ônus, atualizada

[4] Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.

Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.

[5] Christiano Cassettari. Revista Fé Pública. A impossibilidade d Cessão de Direitos Hereditários de Bens Singulares. p. 29.

[6] Carlos Roberto Gonçalves, p. 58.

Assuntos: Direito de Família, Direito de Sucessões, Direito processual civil, Herança, Partilha de Bens

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