Direito ao esquecimento

03/07/2013. Enviado por

Artigo que trata do chamado "direito ao esquecimento", recentemente reconhecido pela VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e por decisões do Superior Tribunal de Justiça.

Nos últimos meses, um tema pouco estudado no Brasil foi objeto de muitos debates. O chamado “direito ao esquecimento” foi reconhecido pelo Enunciado nº 531 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.

Algumas semanas depois da divulgação do enunciado, esse tema foi discutido pela primeira vez numa corte superior brasileira, em duas decisões proferidas pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça). Trata-se do direito de as pessoas serem esquecidas por atos que praticaram ou dos quais foram vítima no passado, o que evita a divulgação de crimes ocorridos muitos anos atrás, pelos quais elas já tenham cumprido pena, absolvidas ou até mesmo sido vítimas.

Apesar de se tratar de uma questão ainda pouco debatida pelos tribunais brasileiros, pode-se recorrer à jurisprudência de tribunais estrangeiros para estabelecer diretrizes. O caso Lebach, julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão, trata justamente desse ponto. Em 1969, ocorreu uma chacina de quatro soldados alemães. Duas pessoas foram condenadas à prisão perpétua, enquanto um terceiro partícipe foi condenado a seis anos de reclusão. Poucos dias antes de este terminar de cumprir sua pena e deixar a prisão, um canal de televisão produziu um documentário retratando o caso, através de dramatização por atores contratados e apresentação de fotos reais e nomes de todos os envolvidos. Em virtude disso, o partícipe pleiteou uma tutela liminar para impedir a exibição do programa.

Quando o processo chegou ao Tribunal Constitucional Alemão, a Corte entendeu que a proteção constitucional da personalidade não admite que a imprensa explore, por tempo ilimitado, a pessoa do criminoso e sua vida privada, especialmente se esse fato for um óbice à sua ressocialização. Em virtude disso, impediu que o canal exibisse o documentário.

O caso Lebach foi citado pelo Ministro Relator Luis Felipe Salomão na fundamentação dos Recursos Especiais nº 1.334.097-RJ e 1.335.153-RJ. No primeiro caso, trata-se de um recurso em processo ajuizado por um dos acusados do caso “Chacina da Candelária” em face da TV Globo. A emissora apresentou, no programa “Linha Direta”, a história desse caso, citando que o autor da ação fora acusado pelo crime, mas ressaltando que, no final, foi absolvido por unanimidade pelo Tribunal do Júri.

Não obstante, a 4ª Turma do STJ reconheceu o direito à indenização. De acordo com o Relator, o ordenamento jurídico brasileiro é repleto de previsões em que se reconhece um direito ao esquecimento de fatos passados, principalmente em institutos do direito penal, como a prescrição. Além disso, são citados dispositivos do Código Penal e Código de Processo Penal que tratam da chamada “reabilitação”, instituto que assegura ao condenado o sigilo dos registros sobre seu processo e condenação. De forma ainda mais protetiva, o artigo 202 da Lei de Execuções Penais dispõe que, após a extinção da pena, não deve constar na folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou auxiliares de Justiça, qualquer notícia referente à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.

Nesse caso da chacina, o STJ entendeu que, apesar de o crime apresentar alta relevância histórica, a apresentação do nome e da imagem de uma pessoa que fora absolvida não era indispensável para que os fatos fossem retratados de forma fidedigna. Ou seja, se o programa poupasse a imagem do absolvido, utilizando-se de pseudônimo, estaria preservado o direito coletivo à informação, sem que fossem desrespeitados direitos da personalidade dessa pessoa.

Já no Recurso Especial nº 1.335.153-RJ, a 4ª Turma reconheceu a aplicação do direito ao esquecimento também às vítimas de crimes. No caso, os familiares de Aida Curi ajuizaram ação de indenização em face da TV Globo, devido à veiculação da história do crime da qual foi vítima por meio do programa “Linha Direta”. Aida Curi foi abusada sexualmente e morta em 1958 no Rio de Janeiro. A história desse crime, um dos mais famosos do noticiário policial brasileiro, foi apresentada pela TV Globo, com a divulgação do nome da vítima e de fotos reais, o que, segundo seus familiares, trouxe a lembrança do crime e todo sofrimento que o envolve.

O Tribunal entendeu, seguindo novamente o Relator Luis Felipe Salomão, que, nesse caso, o crime era indissociável do nome da vítima. Isto é, não era possível que a emissora retratasse essa história sem identificar a vítima, assim como crimes históricos envolvendo Dorothy Stang e Vladimir Herzog. Por isso, negou direito à indenização aos familiares.

Portanto, o STJ apresentou uma linha de raciocínio coerente nesses dois casos, apesar de reconhecer o direito à indenização no primeiro e negar no segundo. Ao utilizar como fundamento o caso Lebach, o Tribunal entendeu que, se não há mais interesse público na divulgação de um fato delituoso em virtude do decorrer do tempo, tanto os condenados por um crime, que já cumpriram sua pena, quanto eventuais absolvidos e até mesmo a vítima têm direito ao esquecimento. Todavia, se a divulgação desses acontecimentos passados ainda envolve um interesse público, como é o caso de crimes que se tornaram históricos, o nome do autor ou da vítima pode ser divulgado apenas se mesmo for indissociável do fato delituoso. Se não houver necessidade de que o nome da vítima ou do autor do crime seja divulgado, o fato histórico pode ser retratado, mas o nome e imagem dos envolvidos devem ser preservados.

           

 

Marcelo Frullani Lopes, advogado graduado na Universidade de São Paulo (USP), sócio de Frullani, Galkowicz & Mantoan Advogados

Assuntos: Criminal, Direito Constitucional, Direito processual penal, Direitos humanos

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