Os Tribunais e a prisão do depositário infiel

06/01/2012. Enviado por

O referido artigo trata acerca do posicionamento dos Tribunais frente à questão da prisão do depositário infiel.

Os mecanismos de funcionamento da Justiça brasileira e as divergências de posições dos tribunais sobre um mesmo assunto estão se tornando cada vez mais difíceis de serem compreendidos pela sociedade. Está em fase de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) um recurso que já é considerado histórico e revolucionário, porque trata sobre assunto polêmico e que nunca gozou de consenso na Justiça brasileira, isto é, a legalidade ou ilegalidade da prisão civil do infiel depositário.

O infiel depositário é aquele que, tendo recebido a incumbência judicial ou contratual de zelar por um bem, não cumpre sua obrigação e deixa de apresentar o bem em juízo ou devolvê-lo ao proprietário no momento apropriado. O processo que está sendo julgado pelo plenário do STF já conta com votos de 8 dos 11 ministros que compõem o tribunal, todos no sentido de que no Brasil é ilegal e inconstitucional a prisão do infiel depositário, sendo possível apenas a prisão do devedor de alimentos. O recurso é oriundo de uma ação envolvendo um devedor considerado infiel depositário e uma instituição financeira, em decorrência de contrato de alienação fiduciária. O julgamento já é considerado tão importante, mesmo sem ter sido concluído, que outros processos mais recentes em tramitação no mesmo STF já o citam como referência para não permitir a prisão do infiel depositário.

Os votos dos ministros do Supremo têm se pautado por profundos estudos sobre a legislação, referências a entendimentos de grandes juristas e comentários sobre decisões dos tribunais sobre o assunto. O que se debate nesse julgamento, em resumo, é qual seria a maneira correta de interpretar a Constituição Federal, os tratados internacionais sobre direitos humanos e a legislação brasileira quando se trata de prisão por descumprimento de obrigações contratuais, isto é, prisão por dívida.

No voto do ministro Gilmar Mendes ele afirma que, a partir do momento da concordância do Brasil em relação a um tratado internacional que envolva matéria de direitos humanos, não pode haver lei ordinária que altere o que o tratado dispõe. Segundo ele, se o tratado for conflitante até mesmo com a Constituição Federal deverá prevalecer sobre ela. O ministro Gilmar Mendes se referiu à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, ao qual o Brasil aderiu em 1992. Um dos artigos do tratado estabelece que não pode haver prisão por dívidas, exceto no caso de dívida de alimentos. Citando um julgamento ocorrido no próprio Supremo na década de 50, o voto afirma que os tratados internacionais que cuidam de direitos humanos têm caráter especial e paralisam toda e qualquer regra que seja hierarquicamente inferior à Constituição Federal e com ela conflite. Por esse raciocínio, a ratificação do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica não revoga o artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição do Brasil, que permite a prisão do devedor infiel depositário, mas paralisou a sua eficácia juntamente como o decreto-lei de 1969 que regula a matéria.

Há mais de um ângulo para se observar os efeitos desse julgamento. No aspecto histórico, por exemplo, o julgamento do STF representa mais um duro golpe contra uma das normas que marcou a herança do período da ditadura militar, quando a prisão por dívida ainda era vista como algo natural e apenas um instrumento adicional para que o credor compelisse o devedor ao cumprimento da obrigação. No âmbito econômico, a aplicação plena dos votos dos ministros do Supremo também poderá gerar algumas conseqüências, pois as instituições financeiras, acostumadas a conceder crédito com garantias seguras, terão agora que enfrentar também no Brasil o cenário de concessão de crédito semelhante à quase totalidade dos países do mundo, onde não há garantia de prisão por dívida.

Mas é na esfera penal que o julgamento do Supremo vem gerando mais interesse, notadamente no direito penal econômico ou empresarial. Se for consolidado o entendimento do STF, uma das mais discutidas teses de defesa em benefício dos contribuintes na esfera criminal passa a se tornar mais forte, isto é, a impossibilidade da prisão por dívida no Brasil. Sobre esse aspecto, alguns juristas na área criminal já comemoram a decisão e afirmam que o Supremo nada mais fez que colocar o Brasil na era contemporânea, pois a prisão por dívida no ocidente já não era permitida há muito.

Mas, se no Supremo o clima é de verdadeira revolução, no Tribunal Superior do Trabalho (TST), corte máxima para julgar assuntos trabalhistas, a prisão de infiel depositário continua sendo tratada como mecanismo legal, regular e plenamente possível. Assim ocorreu com o julgamento de um habeas corpus , no mês de março último, quando o TST entendeu que seria possível a prisão do infiel depositário. Nesse caso, contudo, os bens estavam com o devedor depositário por causa de uma penhora.

Para esquentar mais ainda a polêmica, também recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) julgou um habeas corpus e concedeu alvará de soltura a um empresário preso por acusação de ser infiel depositário. O tribunal fundamentou a decisão exatamente no processo que está sendo julgado no STF. O curioso é que o tribunal de São Paulo entendia que era possível a prisão do infiel depositário, mas agora alterou sua posição em decorrência do julgamento no STF.

Essa divergência entre os tribunais brasileiros em matéria tão relevante mostra uma grave e preocupante característica do sistema judiciário brasileiro. Naturalmente o cidadão comum, que adquire bens, celebra contratos de financiamento ou ainda que é depositário de bens penhorados ficará estarrecido ao constatar que receberá tratamentos divergentes da Justiça, tudo dependendo se o assunto for tratado pela Justiça do Trabalho ou pela justiça comum cível. Nesse contexto, para aquele que tiver a má sorte de ter a prisão civil mantida por uma decisão do TST, seria necessário conseguir um novo recurso a ser apreciado no Supremo, o que é burocrático, incerto e normalmente demorado. Resta aguardar e observar o que isso significará na prática. 

Assuntos: Direito Civil, Direito processual civil, Financeiro, Pagamento

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