REFLEXÕES SOBRE A REINCIDÊNCIA E SUA INFLUÊNCIA NA APLICAÇÃO DA PENA: AGRAVANTE OU NÃO ?

14/01/2021. Enviado por

O presente artigo traz uma breve reflexão sobre o tema reincidência e a influência desse gravame no processo de cálculo para aplicação da pena, tendo como núcleo, a divergência de ser considerada ou não uma agravante.

INTRODUÇÃO

 

 Tratar de Direito Penal no país em que vivemos nos remete a percepção de inúmeras desigualdades, bem como a de políticas criminais aplicadas pelo Estado para garantir a ordem social e sua própria legitimidade (estatal). 

Em se falando de direito penal, trataremos nessa reflexão, especificamente, do tema reincidência, no que tange a sua influência na aplicação das penas, bem como a legitimidade e validade de sua aplicação, uma vez que, vários doutrinadores, entendem a agravante da reincidência com um afrontamento a Constituição Federal de 1988, em que traduz a idéia de que não haverá a dupla valoração de um fato ilícito, o chamado princípio do non bis in iden.

Dessa forma, trazemos doutrinas, jurisprudências e  uma conclusão a respeito do tema.

Para isso, o que se propõe no presente trabalho será apresentado a partir de agora.

No primeiro capítulo, a reincidência como instituto do direito penal, onde se demonstra através da classificação gramatical da palavra reincidência e dos entendimentos por parte da sociedade e de seus aplicadores.

No segundo capítulo, trataremos de alguns problemas relacionados à agravante, com suas principais justificativas e conseqüências de aplicação, trazendo um enfoque em divergência com a jurisprudência dominante, a qual considera a reincidência como constitucional.

No terceiro capítulo, trataremos dos argumentos contra a aplicação da agravante da reincidência, sob à luz de um sistema penal concretizado, moldado, tendo como objetivo, refletir se sobre a realidade em que vivemos no que tange o sistema carcerário brasileiro.

 Nas considerações finais, teceremos nosso entendimento sobre sua a aplicação da agravante.

Foi utilizado como metodologia, o método dialético, onde foram feitas leituras prévias, seletivas e reflexivas sobre o tema abordado, para reestruturação das informações obtidas.

A técnica de pesquisa empregada foi a de documentação indireta, onde foram feitas pesquisa bibliográfica em fontes secundárias, como livros, revistas, teses, monografias, artigos e publicações em geral na rede mundial de computadores, internet.

 
 

CAPÍTULO 1 - A REINCIDÊNCIA COMO INSTITUTO DO DIREITO PENAL

 
 Em nossa gramática, o termo reincidência é o ato ou efeito de reincidir. Conforme o Minidicionário da língua portuguesa Aurélio, reincidir é: 1. Tornar a incidir: reincidir em erro. 2. Tornar a praticar um ato da mesma espécie.

Contudo, na perspectiva jurídico-penal Brasileira, o termo reincidência assume contornos específicos, assim, quando tratamos do tema com leigos, podemos observar que não raramente este assunto é entendido de forma equivocada, com uma percepção de aplicação de direito errônea. Observamos que, via de regra, têm-se por reincidente qualquer pessoa que já tenha se submetido a um inquérito policial, que tenha respondido a um processo judicial (mesmo que não tenha sido condenado) e, facilmente, encontramos pessoas que tragam a idéia de reincidente sobre aquele agente que tenha em sua vida pregressa alguma condenação, não obstante essas possam caracterizar, por vezes, apenas maus antecedentes.

Com efeito, deve frisar-se, de imediato, que no Direito Penal Brasileiro, é entendido como reincidente quem comete novo crime depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior (art. 63) ou quem pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no Estrangeiro, por qualquer crime, ou no Brasil, por motivo de contravenção (art. 7º da LCP), ao passo que os maus antecedentes se referem aos envolvimentos criminais anteriores, os quais, por motivo da questão temporal – eventos não ocorridos após o trânsito em julgado de uma condenação anterior – não caracterizam reincidência.

E, mesmo em relação aos maus antecedentes, existem diferentes orientações; a primeira considera todo aquele inquérito policial ou processo penal em andamento existentes para fins de maus antecedentes. Observa-se, desde logo, que essa orientação confronta-se com o Princípio da Presunção de Inocência, assegurado pela Carta Magna.

Uma segunda orientação tem por maus antecedentes todo aquele processo penal já finalizado, com condenação, mas que não gera reincidência.

            Deve-se, então, ter o devido cuidado de não se confundir o agente que reincide com aquele que possui maus antecedentes.

A reincidência é uma agravante, prevista no art. 61, inciso I, do Código Penal Brasileiro. As agravantes incidem apenas em crimes dolosos, salvo a reincidência, que agrava também a pena de crime culposo.

Para que seja reconhecida a agravante da reincidência, é indispensável que seja  comprovada a condenação anterior do agente por documento hábil, assim, exige-se a competente certidão cartorária em que conste a data do trânsito em julgado. Não bastando, apenas, o assento policial para a comprovação da agravante.

Com efeito, cabe salientar, que o acusado pode ter sido definitivamente condenado por outro crime ou contravenção (causa da perda da primariedade) e não ser qualificado como reincidente quando a condenação for por fato subsequente.

Outro dado relevante a ser registrado no assunto, diz respeito à Súmula 241 do STJ, a qual consolida o entendimento de que a mesma condenação não pode ser utilizada para gerar reincidência e maus antecedentes, podendo assumir, portanto, somente a primeira função, a de gerar reincidência.  

Importante lembrar, seguindo a lição de Fernando Capez:

 

Crimes que não induzem reincidência são eles: os crimes próprios (militares próprios), crimes definidos apenas no código Penal Militar; e os crimes políticos, aqueles que tem motivação política (aspecto subjetivo), bem como os que ofendem a estrutura política do Estado e os direitos políticos individuais (aspecto objetivo). (2003, p. 421)

 

No que se refere às espécies de reincidência, Julio Fabrini Mirabete aponta-nos duas: “a real, que ocorre apenas quando o agente cumpriu a pena correspondente ao crime anterior, e a ficta, que existe com a simples condenação anterior” (2003, p. 301). Sendo esta última adotada por nossa legislação, logo se faz necessário, apenas a sentença condenatória transitada em julgado contra o agente, no país ou no estrangeiro, antes do segundo crime, para incidir a agravante.

De acordo com o nosso ordenamento jurídico vigente, utilizando-se para a aplicação da pena, no que se refere a agravante da reincidência, a espécie ficta, não importará se o condenado cumpriu ou não a pena, e sim, se existiu a condenação por sentença irrecorrível.

 A força do requisito trânsito em julgado da condenação é tão grande em nosso ordenamento que, se o agente responde por um delito anterior e comete um ilícito posterior, e neste é proferida, primeiramente, sentença condenatória, não caberá aqui a agravante pela reincidência, pois não houve (até o momento), sentença condenatória irrecorrível do primeiro ilícito, requisito para a configuração do gravame.

Importante alteração na disciplina do instituo ocorreu em 1977, apresentado na Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do CP em seu inciso 54 trazendo: “a Lei nº 6416 de 1977, alterou a disciplina da reincidência, limitando no tempo os efeitos da condenação anterior, a fim de não estigmatizar para sempre o condenado. A partir desse diploma legal deixou de prevalecer a condenação anterior para efeito de reincidência, se decorrido período superior a 5 (cinco) anos entre a data do cumprimento ou da extinção da pena e da infração posterior.

Quando se aplica a agravante da reincidência, têm-se muitos efeitos, como nos traz Capez (2003, pág. 418):

 

a)           agrava a pena privativa de liberdade (art. 61, I, do CP);

b)           constitui circunstância preponderante no concurso de agravantes (art. 67 do CP);

c)           impede a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando houver reincidência em crime doloso (art. 44, II, do CP);

d)           impede a substituição da pena privativa de liberdade por pena de multa (art. 60, § 2º do CP);

e)           impede a concessão de sursis quando por crime doloso (art. 77, I, do CP);

f)            aumenta o prazo de cumprimento da pena para obtenção do livramento condicional (art. 83, II, do CP);

g)           impede o livramento condicional nos crimes previstos na Lei de Crimes Hediondos, quando se tratar de reincidência específica (art. 5º da Lei n. 8.072/90);

h)           interrompe a prescrição da pretensão executória (art. 117, VI, do CP);

i)            aumenta o prazo da prescrição da pretensão executória (art. 110 do CP);

j)            revoga o sursis, obrigatoriamente, em caso de condenação em crime doloso (art. 81, I, do CP); e facultativamente, no caso de condenação, por crime culposo ou contravenção, a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos (art. 81, § 1º, do CP);

k)           revoga o livramento condicional, obrigatoriamente, em caso de condenação a pena privativa de liberdade (art. 86 do CP) e, facultativamente, no caso de condenação por crime ou contravenção a pena que não seja privativa de liberdade (art. 87 do CP);

l)            revoga a reabilitação quando o agente for condenado a pena que não seja de multa (art. 95 do CP);

m)          impede a incidência de algumas causas de diminuição de pena (arts. 155, § 2º, e 171, § 1º, todos do CP);

n)           obriga o agente a iniciar o cumprimento da pena de reclusão em regime fechado (art. 33, § 2º, b e c, do CP);

  • o)           obriga o agente a iniciar o cumprimento da pena de detenção em regime semi-aberto (art. 33, 2ª parte, § 2º, c);

p)           impede a liberdade provisória para apelar (art. 594 do CPP);

q) impede a prestação de fiança em caso de condenação por crime doloso (art. 323, III, do CPP).

 

Se entendermos que, para cada crime corresponderá uma pena, não se deve agravar a pena do segundo em relação à existência de um primeiro onde houve condenação com trânsito em julgado, a qual se evitará os efeitos supra mencionados.

 

 

CAPÍTULO 2. REINCIDÊNCIA: JUSTIFICANDO E PROBLEMATIZANDO SEU TRATAMENTO COMO AGRAVANTE.

 

 Um primeiro fundamento para justificar a agravante da reincidência, é a idéia de que existe um livre arbítrio, ou seja, uma liberdade de agir por parte do agente infrator.

O agente encontra na culpabilidade a reprovação de sua conduta e a proporção em sua capacidade de entender o caráter ilícito da mesma. O Estado exige que esse agente tenha esse entendimento de reprovação antes que se cometa o ato ilícito propriamente dito, caso contrario, será aplicada uma pena que lhe mostrará essa reprovação.

Uma vez punido o agente, o Estado trabalha com a idéia de que o egresso possui reforçado entendimento da ilícitude de sua conduta - e a sociedade espera que esse o entendimento esteja claro – justificando um exacerbamento da nova condenação por fato delitivo.

Nesse sentido, BOSCHI:

 

Apoiado em decisões do STF, Mirabete, advogou entendimento contrário, afirmando que: a exacerbação da pena justifica-se plenamente para aquele que, punido, anteriormente, voltou a delinqüir, demonstrando com sua conduta criminosa que a sanção normalmente aplicada se mostrou insuficiente para intimida-lo ou recuperá-lo. Há inclusive um índice maior de censurabilidade na conduta do agente que reincide (2000, pág. 268). MIRABETE, Julio Fabrini. apud BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.  ver apud

 

Contudo, sob outra ótica, refletir sobre o tema reincidência é tratar de um assunto que causa desconforto à sociedade, da mesma forma que tratam de uma doença incurável, de que temos vergonha de reconhecer e assumir pelo fato de ser incurável, e se passível de cura ela for, não seremos nós que teremos o remédio.

A reincidência tem em si mesma a figura do insucesso por parte do Estado, que deveria alcançar a recuperação do agente, ao tempo em que tenta trazer para o entendimento desse agente o caráter ilícito de sua atitude para com o ordenamento jurídico vigente, ou seja, a demonstração dos motivos de reprovação da sua conduta.

Não há como tratarmos de reincidência sem nos reportarmos a função social da pena. Percebemos por função social da pena os meios pelos quais será aplicada uma sanção penal/educativa que proporcionará a reinserção do agente no convívio social, com a idéia de que não voltará a delinqüir.

Logo, o Estado não pode deixar de considerar as condições individuais e coletivas em que se encontram os egressos, ou seja, a capacidade individual do agente entender as normas aplicadas pelo Estado e não descumpri-las, ao mesmo tempo em que inserido num meio  instigador, não consegue corresponder as exigências legais.

Cabe aqui, oportunamente, as palavras de Aramis Nassif (Desembargador do TJRS) sobre o tema estudado:

 

No meu entendimento anterior (acreditava na aplicabilidade fisiológica da pena, ou seja, que a pena tem função, e que esta realização deve ser buscada. Assim, poderia concluir que, se não aprendeu com o castigo, da recidiva resultará exasperação da pena. Da meditação que propus, cheguei à desconfortável constatação: aplica-se para a mesma doença o remédio que não curou. Pior, o remédio será sempre o mesmo, até que o paciente morra de seu próprio consumo. Com a devida vênia, o entendimento pela inconstitucionalidade, de imbatível qualificação jurídica, expressa a falta de alternativas concretas ante a, disfunção da pena, mormente se considerarmos a falência do sistema carcerário e, mais amplamente, do sistema penal como um todo. Enfim, o remédio não produz efeito, poderia agravar a doença, mas mesmo assim é abandonado o tratamento... (2001, pág. 115).

 

Em nosso ordenamento jurídico, devemos considerar que o juízo de culpabilidade está baseado na conduta do agente, descrevendo condutas puníveis. As condutas a serem reprimidas pelo poder estatal é que devem ser consideradas para aplicação do texto legal.

O agente (autor) deve ser responsabilizado pelos seus atos, mas nunca por sua personalidade.

Não podemos aceitar do Estado presuma condutas vindouras, pois dessa forma estaremos trabalhando no campo da imaginação, da previsão, tornando instantaneamente inconstitucional a aplicação da pena. A reprovação legal está no ato, na conduta do agente, e não nas condições pessoais do agente, não para agravar sua punição. A capacidade de entender o caráter ilícito da ação (culpabilidade) é um meio de redução na intensidade da pretensão punitiva é um meio de controle para que o Estado não extrapole a função que lhe é concedida pela sociedade, a garantia da ordem pública.

Com a teoria garantista ou agnóstica, afasta-se o modelo ressocializador da pena.

Com relação ao tema em pauta, nos ensina Adauto Suannes:

 

Que os própositos reeducacionais ou recuperadores da pena são absolutamente incompatíveis com o saber criminológico contemporâneo e em relação aquilo que, na prática, ela (pena) realmente é: uma retribuição por aquilo que se fez. A propósito, nesse sentido alertava Luis Alberto Machado, já na década de setenta, que a pena é imposta como castigo, devendo estar livre de preocupações metafísicas de prevenção do crime e ressocialização do criminoso. Aliás, percebe o autor que, sobre a hipócrita afirmativa da reparação, são mantidos os mais desumanos e medievais suplícios.

 

SUANNES, Adalto. apud CARVALHO. Salo de. Crítica a execução penal. 2003. SUANNES, Adauto Alonso S.. A reincidência, autêntico bis in idem. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.14, p. 07, mar. 1994.

 

 

Os considerados garantistas, como podemos perceber, defendem a idéia de caráter político da pena, entendendo pela diminuição dos poderes arbitrários e, até mesmo, na aplicação e execução da mesma.

A reflexão garantista dá liberdade ao juiz da execução para, ao atuar junto aos processos de execução criminal, aplicar suas decisões com plena consciência de que irá remeter o acusado a um instituto fracassado, tendo em vista a situação atual em que se encontram as casas prisionais, pois não cumprem com sua função ressocializadora, visto que acabam por corromper, violar e deteriorar o indivíduo (agente).

  

CAPÍTULO 3. ARGUMENTOS CONTRA A REINCIDÊNCIA SOB A ÓTICA DE UM SISTEMA PENAL CONCRETIZADO

 

 Neste capítulo, com reforço em decisões jurisprudenciais e argumentos doutrinários, vamos analisar os argumentos que têm sido utilizados em nosso sistema penal para não reconhecer a reincidência como agravante.

 

3.1. Falhabilidade do Sistema Penal em Vigor

 

Nosso sistema penal, como já referimos, entende que o egresso, após a aplicação do remédio estatal, entendeu/percebeu que sua conduta foi anti-social e que precisa readaptar-se à sociedade. O Estado devolve esse egresso com a expectativa de que houve uma correção e que o seu papel para com a sociedade foi cumprido.

Sucede que essa expectativa é suprimida no momento em que o egresso reincide, independente se cometeu o mesmo ilícito que o condenou, ou se por um ilícito típico novo.

O que podemos perceber, com certa facilidade, é que o egresso ao ser “re-inserido” no meio social carrega consigo o estigma da criminalização, ou seja, após a punição/remédio aplicada pelo Estado, esse egresso será punido moralmente pela sociedade, não tendo com isso a efetiva re-inserção, como no mercado de trabalho, por exemplo.

O Estado não oportuniza, de fato, condições para que seja oferecido ao apenado um “tratamento” em que possa ser acompanhado durante e após sua saída, o que entendemos ser fundamental para que a “expectativa” do Estado seja alcançada.

Temos por inúmeras as demonstrações da falhabilidade do sistema penal vigente em nosso país. Acompanhamos, de longe - com a sensação de segurança por não estarmos “perto” - a realidade prisional, sendo, dessa forma, extremamente fácil rotular e encontrar soluções para aquele meio. Podemos perceber, que os apenados, não raramente, possuem passagem pelo sistema interventivo do Estado desde a menoridade, onde também encontramos a reincidência juvenil, que não será aprofundado aqui, mas não menos importante do que o tema proposto.

Uma estrutura carcerária precária, falta de aplicação de políticas sociais, falta de recursos econômicos e humanos, estigmatização pela sociedade, ócio, ambientes insalubres, insuficiência dos meios jurídicos para o devido acompanhamento da execução da pena, subtração da dignidade, são apenas algumas das evidências e características que permeiam a vida dos apenados, contribuem para a não readaptação dos apenados à sociedade.                      

Nesse sentido temos:

 

RECEPTAÇÃO. PROVA. ATENUANTE. PENA AQUÉM DO MÍNIMO. POSSIBILIDADE. REINCIDÊNCIA. FRACASSO TELEOLÓGICO DO ESTADO. NÃO RECONHECIMENTO DA AGRAVANTE. A admissão parcial da autoria pela ré sobre a origem ilícita da res, associada à apreensão da res, residir em companhia do irmão do autor condenado do furto e pela ciência da vida pregressa deste, fazem suficiente a prova da condenação. A pena pode e deve ser reduzida aquém do mínimo legal se a pena-base está fixada no mínimo legal. Trata-se de respeitar o princípio da individualização da pena e da igualdade proporcional, que manda tratar desigualmente os desiguais. A reincidência como agravante é uma das mais graves expressões do fracasso teleológico da pena, não podendo ser aplicada. Recurso ministerial improvido. Recurso defensivo parcialmente provido. (Apelação Crime Nº 70006118749, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aramis Nassif, Julgado em 11/08/2004)

 Ao buscarmos decisões sobre a aplicação da agravante da reincidência em grau de recurso, é observado o sistema penal atual, determinadas decisões reiteradas no sentido que existe um fracasso teológico do sistema punitivo vigente, que tratam diretamente da questão de não punição do agente e sim do ato praticado, que por ora, supõe vulnerável e extremamente frágil em sua estrutura, o modelo de sistema carcerário brasileiro.

No que tange a aplicação da agravante, pode-se entender que a política exerce um papel relevante sobre o assunto. Discursos proferidos no sentido de que a solução para minimizar os efeitos de estrutura física, seria a construção de novos estabelecimentos prisionais, discursos esses aclamados pela sociedade, que buscam encontrar uma forma legítima de sensação de justiça feita, não percebendo que não é dessa forma que solucionar-se á tal problema.

Ocorre que, no momento em que se recebe esse egresso, novamente, no sistema carcerário, o sistema mostra por si só que o método utilizado para ressocializar foi ineficaz, demonstrando sua fragilidade perante um problema social, e que em relação à esse “problema”, não está conseguindo gerar os resultados esperados.

Podemos perceber que a promessa de Direito Penal no Estado Moderno, que prima pela individualização da pena, que vê na pena privativa de liberdade uma reinserção social (motivo este que a legitima), tem na sua aplicação a demonstração de sucessivos fracassos e insucessos, pois não oferece meios para que consiga atingir seus objetivos, meios estes previstos por este mesmo Estado, só que não aplicados os dispositivos previstos, por falta de estrutura econômica, política e humana. Este Estado que não suporta sua própria estrutura carcerária, traz um dispositivo em seu texto legal (art. 63 do CP) versando que: o agente que reincidir, dentro de um prazo de cinco anos, terá sua pena agravada, por não ter sido intimidado/recuperado pelo Estado. Para este Estado, é mais fácil agravar a nova condenação do agente que reincidiu, do que tentar recuperá-lo de fato, primeiro por ficar o Estado exposto a ineficiência no tratamento aplicado, segundo para mostrar, como exemplo à todos, a intolerância com a criminalidade, independente de que se esteja ferindo um preceito constitucional (bis in idem).

 

3.2. Bis In Iden

 

Não poderíamos tratar do tema reincidência sem mencionar a violação da dupla valoração fática (bis in iden), que ocorre no decorrer do devido processo penal, quando incide a agravante na pena base, prevista no art. 63 do Código Penal Brasileiro em vigor.

Contudo, a exigência da condenação definitiva pelo fato anterior é requisito fundamental, para não existir a possibilidade e o agente ter duplamente valorada a sua punição, respeitando-se assim, a presunção de inocência, por que este pode restar absolvido do primeiro processo.

 Outro motivo, é o fato de o agente já ter sido condenado por aquele fato específico, cumprindo a pena a qual lhe foi imposta pelo Poder Judiciário, restando cumprida para com o Estado, a sua dívida, porque a pena recai sobre o ato ilícito praticado, e não sobre o autor, como veremos a seguir.

Segundo expõe Zaffaroni temos que:

 

“Nada mais sendo do que uma nova reprovação ao delito anterior, a aplicação do plus de gravidade da pena (seja em sua quantidade, seja na forma de seu cumprimento), decorrente do reconhecimento a reincidência, constituí intolerável afastamento de princípios e regras constitucionais, devendo, assim, ser rechaçado numa nova atuação de Justiça Criminal, pautada por um exercício de poder que faça do exercício da função judiciária um instrumento de limitação, controle e redução da violência punitiva” (ZAFFARONI, apud, KARAM, Maria Lucia. Aplicação da pena: Por uma nova atuação da Justiça Criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, V. vi, p. 127).

 Com essa passagem de Zaffaroni, entendemos que a Justiça Criminal deve atentar-se ao fato de que alguns limites - ainda que pelo entendimento da jurisprudência haja resistência na preservação da aplicação do gravame – ainda que legitimados pela usualidade, estão ferindo preceitos constitucionais claros.

Dentre alguns autores que tem seguido o entendimento de inconstitucionalidade da aplicação da agravante, temos Lenio Luis Streck, que teceu a seguinte crítica:

 

“A reincidência é antigarantista e, consequentemente, um gravame ofensivo às bases em que se assenta o Estado Democrático de Direito,“mormente pelo seu componente estigmatizante, que divide os indivíduos em aqueles que-que-aprenderam-a-conviver-em-sociedade e aqueles-que-não-aprenderam-e-insistem-a-continuar-delinquindo” (Boschi, apud Streck, Lenio Luiz. Tribunal do Júri – Símbolos e Rituais. 3.ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 63 – 68.).

 

Dessa forma, acompanhamos a de inconstitucionalidade da aplicação, visto que vai de encontro, ferindo os preceitos do Estado Democrático de Direito.

 

Nesse sentido encontramos decisões judiciais como as que seguem:

 

LATROCÍNIO. PROVA CONVINCENTE. CONDENAÇÃO AUTORIZADA. REINCIDÊNCIA. INCONSTITUCIONALIDADE. PERSONALIDADE. IMPOSSÍVEL VALORAR CONTRA O CIDADÃO. REGIME INTEGRAL FECHADO. INCONSTITUCIONALIDADE.  A palavra isenta de testemunhas oculares autoriza condenação. A agravante da reincidência constitui indisfarçável bis in idem e recupera o superado direito penal do autor, onde o cidadão responde pelo que é e não pelo que faz.  O cidadão tem a personalidade que lhe é possível ter, logo por ela não responde penalmente pena de agressão ao princípio da não-invasão da intimidade. Regime integralmente fechado agride o sistema princípios da individualização e da progressão das penas. Deram parcial provimento ao recurso defensivo (unânime). (Apelação Crime Nº 70010771392, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 06/04/2005);

 

Assim como:

 

ROUBO MAJORADO. USO DE ARMA. EXCLUSÃO. REINCIDÊNCIA INCONSTITUCIONALIDADE. O reconhecimento da majorante do uso de arma exige perícia demonstradora do seu potencial ofensivo. A agravante da reincidência, por indisfarçável bis in idem e revitalizar o superado não-democrático direito penal do autor, inconstitucional o é. Deram parcial provimento ao apelo defensivo. (Apelação Crime Nº 70010811503, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 30/03/2005) ;

 

 

 

3.3. Ato ou Autor

 

Interpretando nosso ordenamento jurídico, percebe-se que este estabeleceu as sanções a serem aplicadas sempre em relação ao fato típico, ilícito e culpável, ou seja, em função do ato.

No entanto, não raramente, podemos percebemos através da aplicação das penas, que questões subjetivas são levadas em consideração como exemplo podemos citar: classificação étnica, classe econômica desfavorecida, baixo nível de instrução escolar, etc.

Como bem traz Fabiano Augusto Martins SILVEIRA, bacharel em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais:

 

“Com efeito, há disposições normativas que não atendem à gravidade objetiva do fato, fazendo engrossar o juízo de reprovabilidade sobre o agente-do-fato, entre elas as circunstâncias judiciais de caráter subjetivo previstas no art. 59 do CP.

Até onde conseguimos ver, a reincidência afigura-se ao lado destas circunstâncias judiciais, orientando o juízo de culpabilidade não em relação à gravidade objetiva do fato, mas sobre características ou condições pessoais do autor do injusto típico”. BRUNO, Aníbal. Apud, SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Aspectos jurídicos da reincidência: anotações gerais. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.7, n.78, p. 5-6, maio 1999.

 Percebido isto, não se pode aplicar a pena em relação ao autor do fato, e sim em razão do ato ilícito praticado, obedecendo assim, o princípio da igualdade entre os agentes infratores.

   

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 Podemos perceber, principalmente através da divulgação de propaganda em massa (televisão, rádios, jornais, etc.) a idéia de que a solução para a delinqüência está na ampliação do número de vagas nos estabelecimentos prisionais, assim como, a inauguração de novos estabelecimentos para suprir o eterno crescimento das condenações. Salta-nos aos olhos o problema aqui concretizado: construiremos cada vez mais e mais estabelecimentos prisionais, esperando que a solução surja na proporção do número de celas construídas, sem preocupar-se no tratamento que será aplicado dentro da instituição, ainda, havendo reprovação os meios empregados para ressocializar (readaptar) o agente, como por exemplo, concedendo o benefício da progressão de regime. O que não se percebe é que, o simples fato de o agente ser condenado e cumprir dez, quinze, ou trinta anos de reclusão, por exemplo, não é garantia, em hipótese alguma, de que ele não vá reincidir. A questão é que esse agente, um dia, irá sair do sistema prisional, e saindo, será exatamente o reflexo do seu acompanhamento e “tratamento” dentro da casa prisional. Logo, podemos demonstrar para a sociedade que o “problema” não foi solucionado, e sim postergado, porque não esperemos dele conduta diversa pela qual foi condenado.

            Ocorre que, nosso ordenamento trabalha com a possibilidade da condição punitiva subjetiva, o que, deve-se ter muito cuidado, pois é sutil a divisão entre punição objetiva do fato e subjetiva do agente. O texto legal, em seu artigo 59 do Código Penal, trabalha com questões subjetivas, onde incide principalmente a agravante em tela, para a exarcebação da pena pelo critério da culpabilidade.

            No que tange os argumentos que defendem a aplicação da agravante, entendemos que a exacerbação aplicada indica claramente o fracasso do Estado na ressocialização do agente, caindo por terra toda a estrutura preparada pelo Estado para executar a pena imposta.

            Vimos que, a aplicação da agravante, além de estigmatizar o agente, degrine sua identidade pessoal, fazendo com que ele carregue consigo a idéia de que as normas são dogmas e sua personalidade é criminosa, não existindo assim, possibilidade de adaptação ao convívio social e eterno conflito com o poder Estatal.

            Com isso, não podemos aceitar que o Estado, ainda que entendam essa atitude como legitima, puna duas vezes o mesmo autor pelo mesmo fato, valorando a primeira conduta delituosa duas vezes, onde conseguimos enxergar um afronte ao princípio do ne bis in iden.

            Dessa forma, entendemos que a agravante da reincidência não deve ser aplicada, para que exista, se possível for, dignidade na execução da pena, punindo apenas o fato delituoso no qual ele foi condenado e não na personalidade dele, buscando assim, o fim social que a pena possuí.

            Acreditamos ainda mais, que, em algum momento, a reincidência será entendida como um problema do Estado, e não do homem, e o Estado reconhecendo o seu fracasso, tornará a recidiva uma atenuante.

 

REFERÊNCIAS

 

 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal, 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999;

BOSCHI, José Antônio Paganela. Das penas e seus critérios de aplicação. Porto Alegre: Editora: Livraria do Advogado, 2000;

BRUNO, Aníbal. Direito Penal, parte geral, tomo I: introdução, norma penal, fato punível. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.

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Assuntos: Advogado criminalista, Direito Penal, Direito processual penal, Direitos humanos

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