O princípio da fragmentariedade e a intervenção mínima no direito penal

09/08/2012. Enviado por

O artigo tem como objetivo analisar as normas referentes ao Princípio da Intervenção Mínima em relação ao Direito Penal e confrontá-las com os princípios penais previstos na Constituição Federal

RESUMO

O artigo tem como objetivo analisar as normas referentes ao Princípio da Intervenção Mínima em relação ao Direito Penal e confrontá-las com os princípios penais previstos na Constituição Federal, procurando demonstrar a constitucionalidade, de tal princípio. A presente pesquisa teve como justificativa o fato de que o Direito Penal passou por várias fases de evolução, e atualmente vem sofrendo influências do processo global de democratização da sociedade, o que vem forçando a revisão de muitos conceitos tradicionais. O Direito Penal Mínimo ou Princípio da Intervenção Mínima propõe ao ordenamento jurídico penal uma redução dos mecanismos punitivos do Estado ao mínimo necessário. Assim, a intervenção penal somente se justifica quando é absolutamente necessária para a proteção dos cidadãos. O Direito Penal deve apenas sancionar as condutas mais graves e perigosas que lesem os bens jurídicos de maior relevância, deixando de se preocupar com toda e qualquer conduta lesiva, caracterizando, destarte, o caráter fragmentário do Direito Penal, que é corolário do Princípio da Intervenção Mínima. Para a organização da pesquisa usou-se os métodos dedutivo e comparativo. A presente pesquisa se classifica como bibliográfica e exploratória e descritiva. 

Palavras-chave: Direito Penal. Fragmentariedade. Princípio da Intervenção Mínima. Reforma.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, a Carta Magna de 1988 adotou o perfil político-constitucional de Estado Democrático de Direito. No Estado Democrático de Direito significa que leis devem ter conteúdo, vislumbrando, os fatos que colocam em risco os bens jurídicos fundamentais para a sociedade. Sem esse conteúdo tende a haver uma inobservância dos princípios da dignidade da pessoa humana.

A vida em sociedade exige um conjunto de normas disciplinadoras que estabeleçam as regras indispensáveis ao convívio entre os indivíduos que a compõem. O conjunto dessas regras denomina-se direito positivo e este deve ser obedecido e cumprido por todos os integrantes do grupo social, prevendo ainda conseqüências e as sanções aos indivíduos que violarem seus preceitos. A reunião das normas jurídicas pelas quais o Estado proíbe determinadas condutas, sob a ameaça de sanção penal, estabelecendo ainda os princípios gerais e os pressupostos para a aplicação das penas e das medidas de segurança constitui o Direito Penal.

A expressão Direito Penal, porém, designa também o sistema de interpretação da legislação penal, ou seja, a Ciência do Direito Penal, conjunto de conhecimentos e princípios ordenados metodicamente, de modo que torne possível a elucidação do conteúdo das normas e dos institutos em que eles se agrupam com vistas na sua aplicação aos casos ocorrentes segundo critérios rigorosos de justiça. O Direito Penal passou por várias fases de evolução, sofrendo influência do Direito Romano, Grego, Canônico, e também de outras escolas como a Clássica, Positiva, entre outras. Essas influências servem de base para o nosso Direito Penal, justificando procedimentos atuais dentro do Direito Penal Moderno, como a criação dos princípios penais sobre o erro, a culpa, dolo, etc., o que resulta na importância do conhecimento histórico.

Dessa forma, surge o seguinte problema: Qual a importância da adoção do Princípio da Fragmentariedade, e consequentemente, da Intervenção Mínima do Direito Penal no Estado Democrático de Direito. Afinal, apena tem por fim recuperar o criminoso, para devolvê-lo ao convívio social, ou o que deve prevalecer são objetivos de prevenção social?

Assim, diante desse problema, o objetivo geral do presente trabalho é analisar as normas referentes ao Princípio da Intervenção Mínima em relação ao Direito Penal e confrontá-las com os princípios penais previstos na Constituição Federal, procurando demonstrar a constitucionalidade de tal princípio. Os objetivos específicos visam:

  • a) situar o Princípio da Intervenção Mínima como direito fundamental;
  • b) destacar a supremacia da Constituição em relação às outras normas jurídicas;
  • c) demonstrar que, quando inobservado o Princípio da Intervenção Mínima, outros direitos fundamentais e sociais também são violados.

O trabalho tem como justificativa o fato de que o Direito Penal passou por várias fases de evolução, e atualemnte vem sofrendo influências do processo global de democratização da sociedade, o que vem forçando a revisão de muitos conceitos tradicionais. Deve-se sempre ter em mente que o Direito Penal, por ser o mais gravoso meio de controle social, deve ser usado sempre em último caso (ultima ratio) e visando sempre o interesse social. Não podendo transformar-se em instrumento de repressão à serviço dos governantes, a exemplo do que  ocorre nos Estados policiais e/ou totaliotários.

A presente pesquisa se classifica como bibliográfica (quanto aos meios), exploratória e descritiva (quanto aos fins). A metodologia do trabalho adotou o método de abordagem indutivo, em que, segundo Lakatos e Marconi (2006), a aproximação dos fenômenos caminha, geralmente, para planos cada vez mais abrangentes, indo das constatações mais particulares às leis e teorias. 

2 QUADRO TEÓRICO

2.1 Função e princípios constitucionais do Direito Penal no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro

A função básica do Direito Penal é garantir os direitos da pessoa humana frente ao poder punitivo do Estado. Esta forma de encarar as funções do Direito Penal vem da velha tradição liberal. Mas o Direito Penal é um sistema jurídico de dupla face, pois se, por um lado, visa a proteger a pessoa humana diante do Estado, por outro lado, visa a assegurar-lhe os direitos subjetivos por meio do próprio Estado. Ainda que se duvide dessa função garantista, deve ela ser levada em conta na formulação das normas penais, a fim de poder evitar que o Estado de Polícia se manifeste e se sobreponha ao Estado de Direito (CUNHA et al., 2006).

A partir do século XVIII, inspirado pelas idéias de Montesquieu, o estado passou a exercer o monopólio da administração da justiça. Basta ver o Código Penal Brasileiro (art. 345) para se ter uma idéia de que é crime fazer justiça com as próprias mãos. Aquele que tem um direito violado deverá valer-se necessariamente do Estado, que através de um dos seus poderes (o Judiciário) intermediará o litígio. Raras excessões, como legítima defesa e o estado de necessidade - casos em que o ofendido, dada á urgência da situação, não se socorre da proteção estatal - apenas confirmam a regra geral (CUNHA et al., 2006).  

Mas, para que tal direito de punir possa ser exercido em plenitude e para que, ao final, seja aplicada uma pena, é necessário a eixtência de um prévio processo judicial, desenvolvido de forma estabelecida em lei. É o chamado princípio do devido processo legal ou due process law, previsto na Constituição Federal de 1988 (art. 5º. Inc. LIV). Neste processo surgirá a lide penal por intermédio da qual se colocarão, de um lado, o direito de punir do Estado e, de outro, o sagrado direito de defesa do suposto autor do ilícito (TUCCI, 1993).

É imensurável, destarte, a importância que assume o processo penal, sem o qual nenhuma pena pode ser imposta, já que a pena somente pode ser imposta processualmente. Através do processo penal será verificada a procedência da acusação e, nesse caso, aplicada a sanção, na ação vigorosa do Estado, no pleno exercício do direito subjetivo que lhe foi violado. Esse é o motor da ação penal. Afinal, se não há crime sem lei anterior que o defina como tal, não há pena sem o respectivo processo judicial (nulla poena sine judice), podendo-se conceituar o processo penal como o conjunto de princípios e normas que têm por objetivo compor a lide penal (TUCCI, 1993).     

O Direito Penal é o produto da civilização dos povos, através da longa evolução histórica afirma Aragão (apud NORONHA, 2005). O mundo passou por várias etapas de evolução histórica e punitiva e juntamente com estas o Direito Penal também sofreu um processo civilizatório. Com o advento da Revolução Francesa (1789-1799) as idéias no campo do Direito Penal começam a mudar e assim, se dá base para uma evolução no Direito Penal que estabelece a reforma no sistema punitivo e que até hoje é aplicado. As Escolas Penais, segundo Leal (apud NORONHA 2005) são um sistema de idéias e teorias político-jurídicas e filosóficas que, num determinado momento histórico, expressa o pensamento dos juristas sobre as questões criminais fundamentais (NORONHA, 2005).      

Os princípios constitucionais são orientações gerais contidas na Constituição Federal que servem de fundamentos para a estruturação das leis processuais, bem como vetores para a sua correta interpretação. São eles, segundo Cunha et al., (2006, p. 20-22):

a) Princípio do devido processo legal (art. 5º, LVI/CF): este princípio protege o cidadão contra a ingerência arbitrária do Estado, proibindo a este exercer o seu direito de punir senão por meio de um processo judicial legítimo, concedendo ao acusado o direito de oferecer resistência, produzir provas e influenciar no convencimento do julgador. Não se concebe, assim, a existência de uma pena sem o respectivo processo. Com isso, antigas formulas de composição de litígio, como a vingança privada ou autodefesa, por exemplo, não mais são admitidas;

b) Princípio da oficialidade: há órgãos especiais do Estado a quem cabe atuar na persecução penal (apuração e punição do delito). A atuação na investigação do delito cabe à polícia judiciária. Cabe, outrossim, ao Ministério Público propor, privativamente, a ação penal pública (art. 129, I/CF)1. Por último, a imposição da pena é também uma atividade oficial, atribuída aos membros do Poder Judiciário;

c) Princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV/CF): por contraditório se entende a possibilidade que se confere ao réu de conhecer, com exatidão, todo o processo e, em decorrência de tal ciência, contrariá-lo sem nenhuma espécie de limitação. Impõe-se, como conseqüência, a obrigatoriedade ao juiz de ouvir ambas as partes (chamada ciência bilateral das partes), antes de decidir. Estabelece-se, dessa forma, a irrestrita igualdade entre acusação e defesa (sistemas de igualdade de armas), que se situam no mesmo plano, sem privilégios em favor de uma ou outra parte, cumprindo ao julgador velar por este equilíbrio.

A ampla defesa, de sua parte, representa verdadeira conseqüência do contraditório (seu natural desdobramento). Se por intermédio do contraditório se reconhece a absoluta igualdade entre as partes, será por meio da ampla defesa que tal igualdade ganhará corpo, tornando-se efetiva e palpável. A ampla defesa consiste, portanto, na possibilidade do réu em contraditar por completo a acusação. Para tanto, ele pode se valer de todos os meios, à exceção, por óbvio, da utilização das chamadas provas obtidas por meios legais que, mesmo assim, têm sido admitidas, dependendo do caso concreto, em favor do réu: 

d) Princípio do estado de inocência (art. 5º, LVII/CF): também denominado princípio da não-culpabilidade ou da não-culpa, informa que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal contraditória, ou, conforme a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Deste princípio, decorrem três conclusões: 1) qualquer restrição à liberdade do acusado somente se admite após sua condenação definitiva, ou seja, quando nenhum recurso é mais possível2; 2) cumpre à acusação o dever de demonstrar a responsabilidade do réu  e não a este comprovar sua inocência; 3) a condenação deve derivar da certeza do julgador, sendo que eventual dúvida será interpretada em favor do réu (in dubio pro reo);

e) Princípio da publicidade (art. 5º, LX e 93, IX/CF): os atos processuais são públicos, com acesso irrestrito, somente comportando exceções em hipótese de violação à intimidade da pessoa ou quando  interesse social impuser o sigilo, segundo a norma constitucional. O CPP (art. 792, § 1º.) admite ainda que o Juiz restrinja o acesso popular quando constatar a possibilidade de coerência de escândalo, inconveniente grave ou perigo de pertubação da ordem. Outra exceção ocorre no Tribunal do Júri, quando da votação da sala secreta (art. 476, 481 e 482/CPP). São, porém, exceções à regra que, em termos gerais, impõem e confirmam publicidade do processo, por não interessar a ninguém uma justiça de gabinete, secreta, realizada de portas fechadas, sem que o público tome conhecimento do teor dos julgamentos e possa fiscalizá-los. Representa, em última análise, um controle da justiça realizado pela coletividade;

f) Princípio do juiz natural (art. 5º, LIII e XXXVII/CF: implica dizer que ninguém será processado senão pela autoridade judiciária com competência previamente estabelecida pela Constituição Federal para tanto. Com isso, não se admite o chamado tribunal ou juízo de exceção, ou seja, aqauele criado após a oconcorrência do ilícito penal para julgamento de um caso específico, afastando-se a possibilidade de exixtência de um juiz de ocasião ou magistrado encomendado;

g) Princípio do duplo grau de jurisdição: segundo tal princípio, há sempre a possibilidade daquele que se viu prejudicado por uma determinada decisão, dela recorrer, visando ao reexame da matéria, aumentando, assim, a probabilidade de acerto do decisum. Este princípio não encontra expressa previsão no texto da Magna Carta, razão pela qual parte da doutrina entende não se tratar de um princípio constitucional.

Alguns autores como Grecco (2004), Fragoso (2003) e Tavares (2003)   lembram, ainda, de situações em que é impossível o cidadão valer-se de tal direito, como por exemplo, o Presidente da República, quando julgado pelo STF, por competência originária pela prática de crime comum (art. 102, I b/CF). Se condenado, não haverá outro órgão a quem recorrer de tal decisão. A maioria, contudo, entende que, embora não previsto expressamente, o referido princípio decorre do próprio sistema constitucional, onde há menção a uma série de recursos (recursos ordinários constitucionais, especial, extraordinário), além de tratar, também, da competência recursal de vários órgãos da jurisdição, ao aludir a diversos tribunais e estabelecer-lhes as respectivas competências.

Ainda podem também ser lembrados os princípios da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI/CF), e o princípio da obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais (art. 5º, LVI/CF). Também existem outros princípios que são típicos do processo penal, embora sem caráter constitucional, como por exemplo, da busca da verdade real, da oficialidade, do impulso oficial, etc.).  

Segundo Cunha (1995) ainda persiste a indagação sobre um possível mandamento imperativo sobre criminalização ou descriminalização exercido pela Constitução. Esta desenvolve uma função de orientação, na medida em que, possuindo o caráter fragmentário, não prevendo ou protegendo a totalidade de bens e de valores, mas apenas aqueles mais representativos e essenciais aos cidadãos, permitem ao legislador ordinário apenas guiar-se dentro de certos limites. Por exemplo, ao elevar à categoria de bem jurídico a dignidade da pessoa humana, permite que o legislador eleja outros bens dela decorrentes, como a honra.

A Constituição elegendo os valores mais fortes ou mais densos (o chamado núcleo duro da normatividade constitucional), não determina essa eleição, inapelavelmente, uma imposição de criminalização para o legislador ordinário, enquanto medida protetora daqueles mesmos valores. De fato, esse campo de atuação do legislador, que o permite selecionar bens jurídicos dignos de tutela penal a partir de uma diretriz firmada pela Constituição, estabelece-se com o amparo em outros critérios. Uma correta política criminal, baseada nas investigações realizadas pela criminologia, por exemplo, pode ser decisiva nesta seara (CUNHA, 1995).

2.2 O exemplo de ineficiência do sistema prisional brasileiro e o princípio da fragmentariedade no Direito Penal

A instalação da primeira prisão brasileira é mencionada na Carta Régia de 1769, que manda estabelecer uma Casa de Correção no Rio de janeiro. Registra-se também, a Cadeia construída na cidade de São Paulo entre 1784 e 1788, conhecida simplesmente como Cadeia e estava localizada no então Largo de São Gonçalo, hoje Praça João Mendes. Era um grande casarão assobrado, onde funcionava também a Câmara Municipal. Na parte inferior, existiam as salas destinadas à prisão e, no piso superior, os espaços para as atividades da Câmara. Para lá eram recolhidos todos os indivíduos que cometiam infrações, inclusive os escravos, onde aguardavam a determinação de penas como: o açoite, a multa e o degredo; uma vez que não existia, ainda a pena de prisão (FOUCAULT, 2008).

Sempre que um Sistema Penitenciário deixar de respeitar a individualidade do cidadão, criando regras iguais para todos, com o fim pura e simplesmente punitivo, ele será confundido com Regime Penitenciário, já que este sempre receberá influência daquele. Um sistema Penitenciário humano, individualizador e ressocializador, não podem admitir um estabelecimento penal único e, constituindo-se de vários estabelecimentos, obviamente terá de reconhecer uma diversidade de regimes penitenciários, estes que nada mais são que regras, ou seja, os regimes jurídicos a que estão sujeitos os presos de cada estabelecimento penal, conforme as suas peculiaridades e níveis de privação de liberdade. Portanto, os regimes penitenciários devem variar dentro do Sistema Penitenciário conforme o papel que desempenha cada estabelecimento penal na consecução do fim ressocializador da pena (FOUCAULT, 2008).   

No Brasil, o sistema penitenciário é considerado ineficiente, ultrapassado, fora do tempo e, ainda, acusado de servir de escola para a criminalidade. Foucault (2008) chama a atenção para o fato que a prisão não reforma, mas fabrica a delinqüência e os delinqüentes. Logo não exercendo a sua função planejada que é a recuperação do preso e prepará-lo para a sua reintegração à sociedade. A questão da segurança pública é um dos maiores problemas da sociedade brasileiros e, consequentemente na cidade de Manaus, em razão de questões de ordem social e econômica como a exorbitante má distribuição de renda que geram violentas desigualdades sociais.

Em toda ordem jurídica, ainda que democrática, o Estado de Polícia está sempre presente e pode conduzir, a qualquer momento, a um regime autoritário em detrimento das liberdades humanas. Embora seja louvável a política de controle da criminalidade, como recurso a assegurar a todas as pessoas o pleno exercício de seus direitos subjetivos, não pode ela, porém, iludir a população com a falsa idéia de que com a simples incriminação de certas condutas se construirá uma sociedade verdadeiramente protegida e livre de qualquer mazela ou perturbação. A sociedade será protegida na medida em que o Estado atenda aos direitos dos cidadãos, dentre os quais se incluem, indistintamente, todas as pessoas (SANTOS, 2006).

De acordo com Barros e Jordão (2004), o Sistema Penitenciário brasileiro amplia e reproduz as desigualdades sociais, é espaço das mais variadas violações de direitos humanos, e, como instituição política, vem mantendo seu caráter punitivo e pouco ressocializador. Inúmeras são as reflexões sobre o Sistema Penitenciário, tema que ocupa os noticiários, as teses, dissertações e artigos científicos. O Sistema Penitenciário vincula-se ao debate sobre a questão da segurança nos Estados e quanto maior a escalada da violência, maior o debate sobre o seu papel social e político na recuperação ou na marginalização dos indivíduos no seu interior.

Da passagem da pena de suplício à pena privativa de liberdade, o crime, enquanto instrumento de desagregação social, sempre teve seu papel político. Punir rigorosamente os criminosos, no espetáculo das praças, ou nas torturas nas prisões, consistia em ritual “normal”, aceito pela sociedade. A sociedade assustada com o crescimento da violência espera que a prisão se constitua em um espaço de punição e expiação para o criminoso. A manutenção deste sentimento de expiação, comum nas sociedades antigas e atuais se agrava pelo crescimento da criminalidade violenta, principalmente, quando as estatísticas dos crimes apontam vítimas nas camadas mais abastadas da sociedade (BARROS e JORDÃO, 2004).

Nesse sentido, a prisão é uma instituição política. Sua função social, após a formação do Estado liberal é de recuperação dos indivíduos, devendo buscar sua “ressocialização”. Seria contraditório manter os rituais de execução da pena de morte em praça pública, quando os direitos do homem, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, se constituem nos elementos centrais desta nova percepção de política e de poder no mundo ocidental. A função política da prisão se encontra em dois discursos: de um lado, os que acreditam que a prisão deve punir e ser mais rigorosa; de outro, os que defendem a sua manutenção dentro do respeito aos direitos dos reclusos em padrões internacionais de civilização (BARROS e JORDÃO, 2004).

Também existem os defensores de formas alternativas de prisão com penas reparadoras do delito que visam mais a reparação do delito do que o encarceramento como forma de coibir o aprofundamento do indivíduo no mundo da criminalidade. Este aprofundamento na criminalidade seria resultado do convívio com criminosos profissionais. Neste caso, enxergam na reparação um caráter educativo que o aprisionamento não possui (BARROS e JORDÃO, 2004).

Os aumentos da criminalidade violenta, do crime organizado, as ações do terrorismo no mundo, provocaram internacionalmente um movimento na defesa do endurecimento das penas. Tal fato tem provocado o crescimento do número de presos nos mais variados Estados contemporâneos. Tal comportamento revela a crise que enfrenta o paradigma socializador que norteou por muito tempo o discurso sócio-jurídico (RUDNICK, 1999).

No Brasil, a crise do Sistema Penitenciário reflete a incapacidade dos governos em assumir o gerenciamento das unidades prisionais como ambientes de reeducação e recuperação social. Ao contrário, são espaços da desumanização dos indivíduos forçados a conviver com as condições insalubres: espaço físico limitado, ausência de higiene, inúmeras doenças, e a precariedade de acesso à Justiça e aos direitos fundamentais, previstos nos tratados internacionais, na Constituição Brasileira de 1988 e na Lei de Execução Penal (GOMES, 2008).

Sobre o problema de administrar as prisões brasileiras, Salla (2001; apud GOMES, 2008) ressalta a necessidade de se estudar melhor as rebeliões, motins e fugas. Destaca o quanto estes fenômenos são pouco estudados pela ciência, e que muitos deles estão ligados ao problema estrutural da prisão: deterioração dos espaços físicos e locais de encarceramento, superlotação, condições de higiene, ausência de assistência jurídica, de saúde e educação, corrupção, incompetência administrativa, além da constância da prática da tortura.

As violações dos direitos dos presidiários no Brasil se relacionam à fragilidade do nosso Estado de Direito, o que permite que em nosso país as práticas de violação contra os direitos humanos ocorram com tanta freqüência e “naturalidade”. Em dados oferecidos por organização internacionais como a Anistia Internacional e Human Rights Watch constatam-se que as graves violações de direitos Humanos são praticadas principalmente por policiais civis e militares, grupos de extermínio e guardas penitenciários. A prática da tortura se constitui ainda em método comum do trabalho policial: A polícia civil para obter informações e a polícia militar e guardas penitenciários para punir e castigar. (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS).

Em relação ao Sistema Penitenciário no Brasil, o desrespeito à cidadania dos presos se relaciona com a permanência da tortura em muitas unidades prisionais, superpopulação carcerária, autoritarismo, ausência de projetos educativos e esportivos, e o desrespeito aos direitos humanos, à Constituição de 1988 e à Lei de Execução Penal. A maior parte das denúncias das violações de direitos Humanos e da cidadania dos presos é realizada por organizações internacionais, ONGS e grupos que atuam nas unidades prisionais.

A prisão brasileira reflete as grandes contradições da sociedade: um grande rio que separa ricos e pobres, separação cada vez mais extensa, a níveis inaceitáveis para uma sociedade que pensa ser civilizada. Dentro da prisão, o detento é tratado como animal, perdendo sua capacidade de iniciativa, o ritual cotidiano do que fazer ou do nada fazer é determinado pelas administrações, a ausência do diálogo e o autoritarismo marcam o cotidiano das relações prisionais (BARROS e JORDÃO, 2004).

A prisão provoca um processo de prisionalização, no qual o detento se enquadra nas regras e disciplinas do mundo da prisão. A violência e a brutalização das relações pessoais determinam a acomodação ou não do indivíduo a este mundo, embrutece o indivíduo, altera os seus valores, criando uma cultura específica que pode levar o detento a um mergulho mais acentuado no mundo da criminalidade (BARROS e JORDÃO, 2004).

Segundo Barros e Jordão (2004), falar de cidadania e humanização no Sistema Penitenciário brasileiros, passando pelo papel dos agentes penitenciários, significa nada mudar insistem no endurecimento no tratamento com os presidiários do país. Construir mais prisões pode melhorar o problema da superlotação, mas manter o modelo de administração inalterado não irá resolver a crise de gerenciamento das unidades. É preciso alterar nosso sistema de justiça criminal, enfrentar a questão carcerária como um problema de vontade política.

Compreendendo o problema carcerário como problema político que necessita ser debatido no espaço público, com uma ampla participação da sociedade, fica claro que não basta apenas enjaular os criminosos e alimentá-los, precisa-se educá-los, tratá-los com respeito e dignidade. A Prisão necessita ser discutida como espaço de resgate da dignidade e não do aprofundamento da marginalidade, o que não pode ser tarefa de um punhado de militantes e abnegados, mas de toda sociedade (GOMES, 2008).

A fragilidade da democracia brasileira está exposta na forma como a questão política da participação popular e social é relegada a um segundo plano. Não se pode alimentar o povo, dar emprego e achar que se estar sendo democrático. É no espaço do debate político que se tem que encontrar soluções viáveis para os graves problemas que atingem a sociedade, convocando o cidadão a participar deste diálogo que necessita ser tomado dos grupos minorias, os quais nos fizeram acreditar que política é a profissão das elites abastadas e dos intelectuais.

É preciso encontrar saídas politicamente viáveis para o Sistema Penitenciário e para as suas administrações mergulhadas na inoperância, no fatalismo da falência do modelo prisional vigente, que permite que se aceite que seres humanos possam ser tratados como animais, desrespeitados em sua cidadania, vitimizados pelo preconceito e pela segregação social. A Característica marcante do Direitoem um EstadoDemocráticode Direito é a sua fragmentariedade, ou seja, o ordenamento jurídico não deve se ocupar de todas as coisas e atos, o que, além de impraticável, resultaria em um regime de cunho totalitarista, restringindo de forma brutal a liberdade e, por conseguinte, a dignidade humana (GOMES, 2008).

A fragmentariedade deve ser uma característica de todo o ordenamento jurídico, aparece de forma marcante no Direito Penal, considerado o ramo do Direito que se difere dos demais pela rigidez de sua principal sanção: a pena privativa de liberdade. A prisão, largamente criticada pela doutrina moderna é a forma mais drástica de sanção existente em nosso ordenamento jurídico, e, especialmente em nosso precário sistema prisional, um caminho quase inevitável para a completa degradação, física e moral, do ser humano (PRADO, 2007).

O caráter fragmentário do Direito Penal somente pode ser visualizado partindo do entendimento de que o Direito Penal deve se ocupar exclusivamente de reprimir as condutas mais graves aos bens jurídicos mais importantes ao convívio em sociedade. Afragmentariedade do Direito Penal reside exatamente no fato de a tutela penal somente recair sobre uma parte (um fragmento) dentro dessa infinidade de bens protegidos pelo ordenamento jurídico, por meio de seus mais diversos ramos (Direito Civil, Administrativo, Tributário, Comercial, etc.). É no meio a toda essa gama de bens jurídicos protegidos somente caberá ao Direito Penal a tutela daqueles que são considerados essenciais à manutenção do bom convívio social (PRADO, 2002).

Segundo Prado (2002, p. 120):

O postulado da fragmentariedade “opera-se uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que se revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa. Esse princípio impõe que o Direito Penal continue a ser um arquipélago de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente. Esclareça-se, ainda, que a fragmentariedade não quer dizer, obviamente, deliberada lacunosidade na tutela de certos bens e valores e na busca de certos fins, mas limite necessário a um totalitarismo de tutela, de modo pernicioso para a liberdade.

Por fim, destaque-se que existem pelo menos duas conhecidas orientações diante do princípio da fragmentariedade do Direito Penal. Segundo Prado (2002, p. 122).

  • a) O professor Nilo Batista entende que o caráter fragmentário do Direito Penal não constitui um princípio autônomo, mas, sim, mais uma das vertentes do princípio da intervenção mínima. Portanto, para essa primeira corrente, a natureza fragmentária do Direito Penal seria, apenas e tão-somente, mais uma das características do princípio autônomo da intervenção mínima.
  • b) A segunda posição é aquela que identifica a fragmentariedade como decorrência lógica da adoção dos princípios da intervenção mínima, lesividade e adequação social. Nesse sentido, defende Rogério Greco que a fragmentariedade “é a concretização da adoção dos mencionados princípios, analisados no plano abstrato anteriormente à criação da figura típica”.

Nesse sentido e considerando o caráter fragmentário do Direito como um todo são comuns ocasiões em que mesmo os outros ramos do ordenamento jurídico, que não contém toda a carga sancionatória do Direito Penal, se furtam a atuar, frente ao exíguo dano aos bens jurídicos tutelados. Nestes casos, a atuação estatal, além dos já citados problemas, incorreria em grave ofensa ao princípio da eficiência (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 37, caput) já que o dispêndio de recursos materiais e humanos seria claramente desproporcional ao ganho que se poderia obter.      Junte-se a isso o exíguo número de procuradores federais e estaduais, juízes e promotores existentes que devem dar cabo a inumeráveis processos e se verá que o caso não é só de coerência jurídica, mas também de compreender, realisticamente, as necessidades e as limitações da práxis estatal (PRADO, 2007).

Segundo Costa (1992) sendo a Constituição uma norma primária, que estabelece uma ordem de valores essenciais para o cidadão, dela formam-se de maneira derivada e nela apegam-se as leis, que regulam sobre esses valores. A Constituição é, assim, um vetor diretivo para a normativização geral. Ela protege de maneira prioritária a dignidade do cidadão, estabelecendo as linhas mestras, ou os princípios em que se apóiam os legisladores.

Dessas considerações quanto ao caráter fragmentário e originário da Constituição, colhe-se a primeira resposta àquelas indagações. Estabelecendo a Constituição as bases do ordenamento social, onde estão previstos certos bens, passa oferecer princípios relevantes à proteção de outros bens decorrentes dos primários. Neste sentido, apesar do inegável balizamento da intervenção penal, inexiste coincidência quantitativa dos bens jurídicos garantidos pelas ordenações Constitucionais e Penais. Esta, apesar de jungida à norma fundamental, alarga o leque de bens jurídicos, gozando o seu legislador de certa liberdade, mas desde que sempre atenta aos princípios constitucionais (COSTA, 1992).

Modernamente o Direito Penal tem se detido principalmente sobre alguns temas de fundamental relevância para o seu sistema atual, como a proteção dos bens jurídicos, os direitos humanos, a evolução do conceito de ação e conduta, prevenção geral positiva e negativa da pena, a teoria da imputação objetiva, sem falar no simbolismo que hoje lhe é outorgado colidindo com os movimentos que propugnam a sua abolição. Contudo, caracterizada está a falência da intervenção estatal nas relações sociais no que toca a aplicação da pena, já que a pena de prisão é incapaz de reinserir o condenado na sociedade (DIAS, 2004).

Sendo assim, o Direito Penal evoluiu no sentido da despenalização, caracterizando um avanço nas suas estruturas que veio por colidir com um embrutecimento da norma penal marcada nitidamente pela conotação moral e emocional de elaboração da norma e uma clara intenção manipuladora da opinião pública. Essa atividade incriminadora manifesta-se através de uma legislação claramente simbólica, sem qualquer possibilidade de aplicação útil, vindo a chocar-se com a tendência que propõe um Direito Penal Mínimo. O Neoclassicismo, como também é chamado o Garantismo, busca submeter ao controle o poder punitivo do Estado, exigindo-se do mesmo uma estrita vinculação aos princípios de previsibilidade, igualdade, proporcionalidade e segurança jurídica, sem olvidar das garantias formais asseguradas ao suspeito, ao processado e ao condenado (DIAS, 2004).

2.3 O Princípio da Intervenção Mínima no Direito Penal

As transformações que ocorreram no mundo após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) tiveram contribuição decisiva para acelerar o nível de maturidade político-econômico-social dos governos e dos povos, especialmente a partir da década de 1970. Esse fato também ensejou um grande anseio para que se fizesse uma substituição do modelo burocrático de Administração Pública por uma Administração Gerencial. Cresceram as atribuições dos governos, a complexidade de suas ações e a demanda por seus serviços. O processo de globalização econômica também foi impulsionado, tornando-se fator motivador de mudanças de toda ordem: econômicas, tecnológicas, sociais, culturais e políticas. Inúmeros países começaram a abrir suas economias, o nível de educação elevou-se, assim o acesso às informações. As sociedades tornaram-se mais pluralistas, democráticas e conscientes.

O Direito Penal deve estar intimamente interligado com outras ciências humanas a fim de acompanhar a evolução da sociedade, agora com maior conscientização de seus direitos, e suas exigências. A criminologia, em especial, traduz as dimensões da fenomenologia do crime, revelando as áreas de consenso e de maior conflituidade. Nesse passo, é ela importante auxiliar do Direito Penal. Informa as novas exigências sociais, detecta seus valores mais pungentes, mais significativos, bem como aqueles que já não figuram no rol de prioridades (GOMES, 2008).

Com o acesso constante a esses dados, pode-se determinar a política criminal mais adequada a um determinado tempo. Política criminal inclinada para os valores mais representativos da comunidade, que dita, antes de tudo, a retirada da intervenção penal das áreas relativas à moral. A política criminal deve encontrar outros meios mais eficazes e menos gravosos para corrigir os desvios prejudiciais à comunidade. Assim, quando a sanção não se apresentar, na ordem de subsidiariedade, como medida idônea e adequada, a descriminalização deverá impor-se (GOMES, 2008).

O Princípio da Intervenção Mínima nasceu em razão do grande movimento social de ascensão da burguesia na Idade Média que, reagindo contra o sistema penal do absolutismo, tentou banir o abrangente arbítrio do Estado, o qual, respeitando a prévia legalidade dos delitos e das penas, criava figuras delitivas iníquas e instituía penas vexatórias à dignidade humana. Já naquela época, Roxin (2003) entende que, sendo a pena a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao Estado, este não deveria recorrer ao Direito Penal e sua gravíssima sanção se existisse a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não-penais (ROXIN, 2003).

Segundo Montesquieu (apud BATISTA, 2005) tomava um episódio da história do direito romano para assentar que quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas; Beccaria (apud BATISTA, 2005) advertia que proibir uma enorme quantidade de ações indiferentes não é prevenir os crimes que delas possam resultar, mas criar outros novos; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão prescrevia que a lei não estabelecesse senão penas estrita e evidentemente necessárias. Assim, o Direito Penal, como ultima ratio, só deveria intervir nos casos de ataque muito graves aos bens jurídicos mais importantes, devendo as perturbações jurídicas mais leves ser objeto de outros meios de controle social.

No Direito moderno, nos idos da década de 1960, surgiu um movimento doutrinário quase universal compartilhando a idéia de redução da inflação legislativa em matéria penal, através da desinstitucionalização, sendo hoje o programa de descriminalização o mais importante em termos de política-criminal, estando intimamente relacionado ao Princípio da Intervenção Mínima. Passou a buscar-se a menor ingerência estatal em termos punitivos para a solução dos conflitos sociais. Entretanto, esse entendimento deu-se apenas no âmbito doutrinário, pois no campo legislativo o que se viu foi justamente o contrário: um crescente aumento das normas repressivas (BATISTA, 2005).

O processo de intervenção do Estado através do Direito Penal ganhou maior amplitude na década de 1980, com o surgimento de grupos progressistas, como os feministas e ecológicos, e da falsa idéia de que a solução dos conflitos sociais se daria com a direta intervenção do Estado através do Direito Penal. Desta forma, passa a surgir, de maneira progressiva, um intervencionismo penal cada vez mais intenso e abrangente, o que resulta na criação de novos delitos e na ampliação do conteúdo de tipos já existentes. A ingerência penal deixa de ser a eficaz tutela dos bens jurídicos essenciais, passando a significar um impacto tranquilizador sobre o cidadão, acalmando os sentimentos de insegurança (BATISTA, 2005).

Na doutrina penal, considera-se que a tarefa imediata do Direito Penal resume-se na proteção de bens jurídicos. Distinguindo-se dos demais ramos do direito por atuar como ultima ratio, ou seja, somente se justifica a proteção penal quando os outros ramos do direito forem insuficientes. Logo, a proteção penal é subsidiária. O Direito Penal também somente deve atuar quando a lesão (ou ameaça de lesão) ao bem jurídico apresentar gravidade (significado penal). Não formando, portanto, um sistema fechado de condutas, mas fragmentário (CALLEGARI, 1998).

Desse caráter limitado da proteção penal (subsidiariedade e fragmentariedade) deduz-se um princípio fundamental do direito penal moderno (clássico). Trata-se do princípio da intervenção mínima: o direito penal somente tem legitimidade para atuar nos casos de grave lesão (ou ameaça de lesão) a bens jurídicos fundamentais para as relações sociais. Dessa característica da proteção penal (mínima intervenção) se junta outra: o garantismo. O Direito Penal, desde o século XVIII, é uma busca pela limitação do poder punitivo do Estado face ao cidadão. Pelos séculos passados constatou-se que o poder punitivo do Estado sempre serviu à opressão. Daí, o Direito Penal moderno (liberal) ter sido construído a partir de um discurso garantista, caracterizando o Direito Penal da Escola Clássica como um instrumento de proteção do indivíduo contra o Estado (CALLEGARI, 1998).

Na década de1980, atese abolicionista (o crime não tem realidade sociológica e os conflitos sociais que realmente existem só podem ser solucionados com a participação efetiva dos sujeitos envolvidos) perde a importância que teve nas duas décadas anteriores. Ressurgindo o discurso do controle social da pena, mas, em respostas às duras críticas anteriores, com maior ênfase nas características do Direito Penal acima apontado. Essa revitalização do princípio da intervenção mínima e do garantismo penal passou a ser denominada de Direito Penal Mínimo ou minimalismo penal que tem como proposta central a mínima intervenção do Estado, com a máxima garantia do direito de liberdade do cidadão (CALLEGARI, 1998).

Segundo Callegari (1998), a prisão somente deve ser aplicada para se evitar mal maior para a sociedade, em decorrência da sua falência (alto custo, ineficácia e injustiça); bem como, a conhecida seletividade do sistema penal deve ser combatida pelas garantias individuais. Em resumo, o Direito Penal Mínimo, reconhecendo certa utilidade social no controle penal, aponta para a descriminalização (abolição de vários tipos penais, tendo como critério a fragmentariedade e subsidiariedade), despenalização (criação de vias alternativas que solucionam o conflito penal sem aplicação de pena) e desinstitucionalização (diversificação da resposta penal, transferindo o conflito para os sujeitos envolvidos).

Na legislação brasileira, a Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais) tem sido apontada como o principal diploma legal de inspiração minimalista. Contudo, essa não é a característica da nossa política criminal (se é que existe). Ao contrário, desde o início da década de 90, o movimento da lei e ordem tem conseguido ampliar a abrangência do sistema punitivo, apesar da sua ineficácia, criando novos tipos penais, aumentando as penas e restringindo garantias individuais. Tudo em nome de uma suposta e interminável guerra contra o crime que enriquece as empresas de comunicação de massa e elege políticos demagógicos (NUNES, 2004).

O rigoroso discurso punitivo da década de 1990 desvincula a pena da função protetora de bens jurídicos, na medida em que define o crime não como uma lesão (ou ameaça de lesão), mas como uma falta de lealdade à ordem social, uma opção de maus cidadãos que devem ser duramente castigados. Criando, assim, um Direito Penal simbólico, incapaz de promover a paz social que proclama, mas perfeitamente capaz de contribuir para a manutenção da ordem social (NUNES, 2004).

Por fim, na onda atual da globalização, com a diminuição do Estado, não se pode confundir Direito Penal Mínimo com a Mínima Intervenção do Estado nas relações sociais. Ao contrário, a Mínima Intervenção do Estado (neoliberalismo) necessita da máxima intervenção na liberdade do indivíduo, pois reduz os investimentos em programas sociais, ao mesmo tempo em que aumenta os excluídos e a concentração de riqueza. A ordem social precisa ser preservada. Assim, na área criminal, o Direito Penal do neoliberalismo é o norte-americano, conhecido no Brasil como Direito Penal simbólico, que se caracteriza pela ampliação das condutas tipificadas, aumento e rigor das penas, diminuição das garantias individuais, ineficácia na proteção do bem jurídico e uso comercial e eleitoreiro da notícia do crime (NUNES, 2004).

O Princípio da Intervenção Mínima não está expresso na Constituição Federal/88 nem na legislação penal, mas nem por isso deixa de ter aplicação legal em nosso direito, cabendo ao intérprete colocá-lo em prática justamente por sua compatibilidade e conexão lógica, pois está intimamente relacionado a outros princípios jurídico-constitucionais e com os pressupostos políticos do estado democrático de direito, pois está aposto no âmbito dos princípios político-criminais, limitando o poder punitivo do Estado (BATISTA, 2005).

O Princípio da Intervenção Mínima está relacionado a duas características básicas do Direito Penal, quais sejam a fragmentariedade e a subsidiariedade. O Direito Penal é um sistema descontínuo de ilicitudes e por isso não há plenitude no seu sistema jurídico, já que este não é capaz de solucionar todos os conflitos. Devido a esse caráter não linear do Direito Penal, este não deve se preocupar com todo e qualquer ato ilícito, mas apenas com alguns poucos atos ilícitos considerados mais graves. Esse é o seu caráter fragmentário (CALLEGARI, 1998).

Com a intervenção mínima, outros mecanismos de controle passariam a reger o convívio social. Nesse sentido, Gomes (1995) cita o princípio do consenso, base da conciliação através da transação penal prevista na lei 9.099/95 e a suspensão condicional do processo. O princípio do consenso está claramente posto em prática quando, por exemplo, a lei dos juizados especiais adota medidas despenalizadoras, ou seja, medidas penais ou processuais alternativas que procuram evitar a pena de prisão (GOMES, 1995).

O parágrafo único do artigo 69 da Lei 9.099/ 95 demonstra o que se afirma: “Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança”. Não se trata de descriminalização da conduta, pois persiste o caráter ilícito do ato praticado pelo agente. Além da despenalização e da descriminalização das condutas socialmente irrelevantes, outros são os métodos que buscam a intervenção mínima do Direito Penal, como a descarcerização, manutenção mínima em cárcere; desistintucionalização, atribuir a uma instância informal a solução de pequenos conflitos; e diversificação, criação de órgãos ad hoc para a solução de pequenos conflitos (GOMES, 1995).

Esses conflitos de que tanto se fala e que são alvo de uma nova política-criminal que busca a intervenção mínima, seriam aqueles que, como já se falou no início, acarretassem um resultado desvalorativo, ou seja, de valor somente significativo para as partes conflitantes, pois é através da concepção analítica do delito adotada pelo ordenamento repressivo que se atribui o valor utilizado pelo Direito para a caracterização do fato como punível suficiente para que se realize a repressão de natureza jurídico-penal (GOMES, 1995).

Outros meios de que o Estado poderia dispor para a efetiva tutela dos bens jurídicos sem recorrer ao Direito Penal seria a otimização de outros ramos do Direito, como o Direito Administrativo e o Direito Tributário. Desta forma, sem retirar o caráter ilícito da conduta do agente, e atribuindo-lhe sanções administrativas estariam garantindo através de procedimentos mais simples, a manutenção da ordem, buscando-se sempre o bem comum, que é a finalidade do Estado (FRANCO, 1996).

As conseqüências mais visíveis da não aplicação do Princípio da Intervenção Mínima se refletem no campo prático. O Direito Penal busca dar ao condenado aprisionado, teoricamente, um tratamento ressocializador. Esta talvez seja uma das maiores ilusões, pois no atual sistema penitenciário, onde presos temporários dividem celas com condenados, jamais se poderá falar em ressocialização, visto que sequer são respeitados os mais básicos direitos humanos (FRANCO, 1996).

O inchaço de tipos penais significa dizer uma maior carga de ações penais a serem propostas, acarretando uma sobrecarga aos tribunais em termos de quantidade de processos para serem julgados, pondo em risco a qualidade da prestação da tutela jurisdicional, atravancando ainda mais a administração da justiça. Por fim, o agravamento das finanças públicas, através da elevação dos custos operacionais do sistema penal, sobre o Estado, em quem recai o encargo de manutenção dessa indigente massa de condenados (FRANCO, 1996).

Entretanto, resta saber até quando o Direito Penal irá abarcar e arcar com o ônus de todo um sistema legislativo que cada vez mais vem crescendo em razão da criação de novos tipos penais. A aplicação do Princípio da Intervenção Mínima é uma solução racional para o desafogamento da máquina estatal, emperrada em centenas de ações que, em stricto sensu, só interessam às partes a solução do litígio, o que certamente poderia ser resolvido por outro mecanismo que não a Justiça Penal. Talvez o legislador esteja no aguardo do surgimento de um novo ramo do Direito, como ocorreu com o Direito Administrativo em relação ao Direito Constitucional, sendo que esta alternativa, se não mais árdua, certamente levará muito mais tempo para se estabelecer do que a rápida aplicação da mínima intervenção (BITERCOURT, 2007).

Dizer que a intervenção do Direito Penal é mínima significa dizer que o Direito Penal deve ser a “ultima ratio”, limitando e orientando o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta somente se justifica se constituir um meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. O Direito Penal somente deve atuar quando os demais ramos do Direito.

Assuntos: Condenação, Direito Penal, Direito processual penal

Comentários ( Nota: 3 / 1 comentários )

Fale com advogados agora


Compartilhe com seus amigos

Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+