Erro Médico - A História da Medicina Legal: 200 anos de Medicina e Direito

20/03/2018. Enviado por

Este trabalho tem como escopo a narrativa histórica dos primeiros casos de negligência médica nos Estados Unidos, na análise é possível observar o início do que seria o direito medico e a exigência da licença para exercer medicina.

INTRÓITO

Os atuais modelos de saúde seriam irreconhecíveis quando comparado com o sistema de saúde em 1812, e nenhum médico do século XIX, se sentiria em casa em um hospital moderno. Mas um advogado do século XIX, no entanto, sentiria completamente a vontade em um tribunal contemporâneo, como também um advogado de hoje se fosse transportado para o início do século XIX. Embora a escravidão ainda era legal e as mulheres não tinham o direito de votar, a Suprema Corte dos Estados Unidos foi a mais alta corte do país e da Constituição dos EUA, a sua Declaração de Direitos estava familiarizada com o júri e o sistema de direito comum (common law) adotado pela Inglaterra.

Médicos e advogados não necessariamente se entendiam em 1812, da mesma forma que os de hoje não se entendem, principalmente por causa dos litígios de negligência médica. Em 1851 foi lançado a obra-prima metafórica de Herman Melville, Moby Dick, simbolizava a visão de muitos médicos naqueles tempos e os de hoje, que o litígio de negligência médica é a baleia branca: mal, onipresente, e aparentemente imortal.

A Medicina e a lei foram, no entanto, muitas vezes vistos como as duas principais profissões, e para os principais médicos naquele tempo, incluindo Walter Channing editor-chefe 1825-1835 do que é hoje o New England Journal of Medicine, a relação entre a medicina e o direito era de grande interesse intelectual e prático.

Ao longo dos últimos dois séculos, a disciplina de jurisprudência médica (a aplicação do conhecimento médico para as necessidades jurídicas) foi renomeada de medicina legal (incluindo a ciência forense), a aplicação da lei para a medicina tem se expandido de lei médica a lei de saúde.

Ocorreram mudanças nos procedimentos jurídicos como também nos próprios tribunais, neste cenário podemos mencionar as inúmeras mudanças na aplicação do direito à medicina ao longo dos últimos 200 anos, como houve mudanças na própria prática da medicina. O Relacionamento íntimo da lei de saúde com a ética médica também tem um forte precedente.

O Título original de Thomas Percival para seu texto Medical Ethics 1803, que tem sido descrito como "o tratado mais influente sobre ética médica nos últimos dois séculos”. Mais da metade do texto de Percival aborda especificamente"deveres profissionais... Que exigem um conhecimento da lei".

Walter Channing foi professor de obstetrícia e de Direito Médico. Em suas palestras sobre este último assunto em que se tornaria Harvard Medical School, se baseou principalmente no texto de 1823 por Teodorico Beck,"Elements of Medical Jurisprudence”.

As principais áreas de jurisprudência médica no início do meado século XIX foram patologia forense (determinação da causa de morte em casos criminais, especialmente quando a suspeita de envenenamento) e psiquiatria forense (determinação, por exemplo, de saber se o réu era "sano" no momento em que ele cometeu um crime).

Em 1854, o ano que Channing se aposentou do ensino, o curso foi intitulado "Obstetrics and Medical Jurisprudence”.

Estudos sobre a jurisprudência médica dos tempos de Channing podem ser encontrado em uma das três partes da resenha do notável livro, abrangendo 24 páginas de diário, que ele escreveu 6 anos mais tarde.

O livro que ele revisou, escrito pelo médico-advogado John J. Elwell, “A Medico-Legal Treatise on Malpractice and Medical Evidence: Comprising the Elements of Medical Jurisprudence”: também composto pelos elementos da Jurisprudência Médica, foi publicado em 1860.

Tanto o livro e revisão de Channing pode nos ajudar a ver como a jurisprudência médica evoluiu para lei de saúde em grande parte da forma que obstetrícia evoluiu.

MEDICINA E O DIREITO

Para além das muitas áreas do direito que afetou diretamente a prática da obstetrícia no século XIX (mais notavelmente, o aborto, o feticídio, e infanticídio), a jurisprudência médica não era o tema principal de Channing.

No entanto, principalmente em função da importância do testemunho médico em ambas as áreas, cíveis e criminais, e com base em suas próprias experiências nas salas dos tribunais como perito; Channing acreditava firmemente que os médicos deveriam conhecer as leis, o suficiente para ser testemunhas úteis e credíveis no tribunal.

Ele fez essa ponderação em um núcleo de suas palestras na escola médica sobre o assunto. Channing acreditava que a medicina e a lei, dois dos mais diversos chamados podem atuar em perfeita harmonia, e para o benefício igual de ambos.

Ele também citou o perito médico-legal David Paul Brown:

" Um médico que nada sabe de direito, e um advogado que nada sabe de medicina, são deficientes em requisitos essenciais de suas respectivas profissões ".

Dois casos foram tratados por Elwell, ilustrando aos tribunais os padrões da medicina e atuação dos médicos quacks (termo utilizado para o individuo que de forma fraudulenta ou não, simula habilidades médicas que não possui, podendo ser usado também como Charlatão) no final de XVIII e início do século XIX.

ERRO MÉDICO E A EXIGÊNCIA DA LICENÇA MÉDICA

O primeiro é o caso célebre de Slater v. Baker e Stapleton, decidido na Inglaterra em 1767. Slater tinha quebrado a perna, e não tinha se curado bem, ele havia procurado tratamento de outro médico, um cirurgião chamado Baker (boticário Stapleton). Eles quebraram a perna novamente e colocaram em" um objeto de aço pesado que tinha dentes "para esticá-la, obtendo um resultado pobre para os padrões na época. O paciente" Slater "processou-os, e três cirurgiões declararam que a" coisa de aço "não deveria ter sido utilizada.

O júri concedeu Slater £ 500 (aproximadamente £ 60.000 hoje), e os réus apelaram. O tribunal de apelação confirmou a sentença, dizendo que um experimento radical poderia ser considerado negligência em si, pelo menos na ausência de consentimento do paciente. Nas palavras do tribunal:

“Este foi o primeiro experimento feito com este novo instrumento; e, embora os acusados em geral poderem ser tão hábil em suas respectivas profissões como quaisquer dois senhores na Inglaterra, mas o Tribunal não pode deixar de dizer que, neste caso particular, eles agiram por negligencia e imprudência, ao contrário da regra conhecida e uso de cirurgiões”

Elwell razoavelmente fez objecções à conclusão do Tribunal de que se um médico está envolvido em uma experiência única, então esse fato por si só torna o médico culpado de imprudência e negligencia.

Ele observou que a" imprudência ", (padrão apontado fortemente para intenção criminosa ou de negligencia e precipitação culposa), tornaria o médico realmente culpado de um crime. Mais tarde, em seu texto, Elwell descreveu apenas um caso, o que ele chamou de “the leading American case on criminal malpractice".

O caso de Negligencia Criminal, tratava-se de um médico quack (termo utilizado para o individuo que de forma fraudulenta ou não, simula habilidades médicas que não possui, podendo ser usado também como Charlatão) acusado de homicídio devido a morte de seu paciente.

O Charlatão tinha vindo para Beverly, Massachusetts, em 1807 e anunciou-se como um médico com "a capacidade de curar todas as febres".

Ele usou várias misturas, incluindo drogas que ele chamou de "coffee", "well-my-gristle", e "ram -cats".

Ele administrou essas drogas, juntamente com o calor e cobertores, por aproximadamente uma (1) semana para o paciente que ele havia sido contratado para curar um severo resfriado. O paciente vomitou frequentemente, tornou-se esgotado, e em poucos dias sofreu uma série de convulsões, até falecer.

Houve testemunho de que as altas doses da droga "coffee" poderia agir como um veneno. O júri foi instruído que para que o médico charlatão fosse culpado de homicídio eles deveriam achar que a morte foi feita com dolo, e não havia nenhuma evidência disso.

Para que houvesse o homicídio culposo é necessário que a morte seja "a consequência de algum ato ilegal", mas não havia nenhuma exigência legal na época tanto para o licenciamento ou a educação, a fim de chamar a si mesmo de médico. O juiz resumiu as suas instruções ao júri:

“É extremamente lamentável, que as pessoas sejam tão facilmente persuadidas a confiar nestes charlatães itinerantes... Se essa paixão surpreendente deve continuar parece haver nenhum remédio adequado por um processo criminal, sem a interferência do legislador... se o charlatão deve prosseguir prescrevendo receitas, com intenções e expectativas de aliviar seus pacientes honestos”.

O júri em conformidade declarou o Réu inocente. Pelo menos em parte como resultado deste veredito, o legislador de Massachusetts aprovou sua primeira lei de licenciamento médico em 1818.

Essa lei proibiu curandeiros sem licença de utilizar os tribunais para cobrar o pagamento. Não foi até o final desse século que a prática de medicina sem licença foi declarada crime.

ERRO MÉDICO E JURI LEIGOS

O historiador Michael Bliss argumenta que, no século XIX, "muito do poder terapêutico do medicamento resultou da cirurgia". Se é ou não terapêutico, Channing observou em meados do século XIX que a negligencia médica foi "quase exclusivamente cobrado sobre a prática cirúrgica".

Elwell catalogou e forneceu exemplos concretos de casos cirúrgicos mais comuns de negligência médica, os que envolvem a amputação e tratamento de fraturas. Beck também devidamente dedicou, nas palavras de Channing, "muito do seu trabalho" (15 de 42 capítulos e 232 de 582 páginas) para a questão da negligência médica, que "dá ao seu volume de um grande valor, e faz dele um grande benfeitor à profissão”.

Embora Channing pensasse que o júri era uma instituição maravilhosa, ele não achava que era apropriado para os casos de negligência médica. Ele argumentou que a medicina era inerentemente difícil de entender e não é adequado colocar júris leigos, ele achava que os mesmos eram influenciados por duelo de peritos cujo depoimento não podiam falhar. Channing perguntou, em palavras que encontram expressão comum hoje em dia,

o que deve ser feito para remediar um defeito tão gritante na nossa jurisprudência - um defeito causando tanto mal ao acusado quanto para a sua profissão? ". Sua própria resposta foi sugerir que, como oficiais militares, os médicos devem ser julgados por seus" pares ", porque "não há outra maneira possível de obter justiça”.

Sua visão não era única na época. Foi de forma independente, informou que "entre 1845 e 1861 foram verdadeiramente alarmantes o aumento de ações por imperícia médica", e em 1850, ele comunicou para a Sociedade Médica de Massachusetts no que se refere aos processos penais "alarmantemente frequentes" por imperícia e a crença de que alguns cirurgiões estavam fechando suas clinicas por causa disto.

O Massachusetts Medical Society "recomendou que um médico seja engajado em recusar o paciente se julgar que o mesmo tem intenção processa-lo".

Um século e meio de "reformas de negligência médica" não mudou a opinião da profissão médica no processo de erro médico, que ainda é visto como desnecessariamente contraditório, vergonhoso e injusto. Para muitos médicos, o processo de negligência médica continua a ser a baleia branca perigosa.

Os advogados sãos vistos como tubarões ou abutres, trazendo à mente a descrição de Melville dos tubarões que assediam os barcos de baleias.

“aparentemente passando de fora das águas escuras... Maliciosamente tirando os remos... Seguindo-os da mesma maneira presciente que pairam os abutres".

A SUPREMA CORTE AMERICANA E O DIREITO MÉDICO CONTEMPORÂNEO

Direito e Medicina têm sido intimamente associados, pelo menos nos últimos dois séculos, mas não foi até 1964 que os Jornais inauguraram uma característica regular sobre o assunto (então chamados de medicolegal relations) e William J. Curran começou a escrever sua"Law–Medicine Notes”.

Como Elwell e Beck antes dele, Curran dedicou um número significativo de seus artigos para o tema de negligência médica (incluindo a responsabilidade do hospital), medicina legal (o qual inclui o aborto), e psiquiatria forense, mas ele também abordou novos tópicos, por exemplo: a mudança de papéis do médico nos casos de pena de morte, a tortura, o cuidado dos moribundos, a pesquisa fetal e a determinação da morte de acordo com critérios cerebrais.

A Lei de saúde - isto é, a lei aplicada ao campo da saúde - tem se expandido muito além de qualquer coisa que Channing poderia ter imaginado. O reconhecimento dos direitos dos doentes e a expansão das regras e mecanismos de regulamentação, tanto para a prática médica, quanto a de financiamento, tem vastamente ampliado o campo.

Os direitos dos doentes, especialmente a doutrina do consentimento informado, foi reforçada por tais julgamentos como no julgamento dos médicos nazistas em Nuremberg (1946-1947) e a decisão da Suprema Corte sobre o aborto no caso Roe v. Wade (1973).

consentimento informado é o núcleo do Código de Nuremberg, como poderia ter sido o núcleo de Slater v. Baker quase 250 anos atrás. Em seu rosto, Roe v. Wade derrubou a maioria das leis estaduais que fizeram o aborto um crime, mas seu impacto na assistência médica vai muito além do aborto.

O Tribunal de Justiça Americano decidiu que os direitos de tanto o médico como o do paciente têm uma dimensão constitucional que limita o poder do Estado de interferir na relação médico-paciente.

A política do aborto tem levado o Tribunal Americano a decidir mais de 3 dúzias de casos sobre o aborto nos últimos 40 anos. As estruturas em evolução do financiamento e da prática de cuidados de saúde também seria irreconhecível para os médicos do século XIX, incluindo planos privados de saúde, Medicare e Medicaid, cuidados gerenciado, as trocas de seguros de saúde e organizações de cuidados responsáveis incentivados pelo Affordable Care Act, regulamentos antitruste, medidas para evitar fraudes e abusos, e os requisitos de divulgação financeira.

Um terceiro desenvolvimento também é digno de nota - a aplicação de lei de saúde para o campo dos direitos humanos internacionais, incluindo o direito à saúde, a regulamentação da pesquisa em seres humanos, e o papel do médico na guerra e conflito civil. Médicos e advogados agora trabalham juntos em organizações Norte-Americanas, como a Physicians for Human Rights and Global Lawyers and Physicians.

Trabalhando separadamente, associações médicas, incluindo a British Medical Association e da World Medical Association, ao invés de associações jurídicas, merecem muito do crédito para o crescimento da "saúde e direitos humanos internacionais”.

Ambos, direito e medicina são ferramentas críticas para melhorar a saúde e o bem-estar em um nível global, e cada profissão é mais eficaz quando ambos trabalham juntos.

A Lei permanece entrelaçada com a prática da medicina, como era no século XIX. Médicos que não têm uma compreensão básica da lei são, como Channing reconheceu, uma clara desvantagem quando se pratica medicina. A evolução da jurisprudência médica para o direito da saúde ao longo dos últimos dois séculos tem sido dramática. Mas igualmente consequente são as formas pelas quais essas questões de direito da saúde são emolduradas e fóruns legais em que são resolvidas.

As leis estaduais americanas que regem a prática médica (incluindo o aborto e cuidados de fim de vida) agora são desafiadas como infrações inconstitucionais de direitos individuais, com a determinação final apresentada pela Suprema Corte Americana.

Vale lembrar, que o Tribunal também se tornou ativo na determinação da constitucionalidade da legislação relacionada à saúde federal e na interpretação do significado dos estatutos federais no campo da saúde, desde a regulamentação do tabaco e drogas para o controle de armas.

O destino da Affordable Care Act, a maior"lei de saúde"da década passada, também foi decidido pela Suprema Corte Americana - impensável nos dias de Channing.

As mudanças na substância e ênfase em direito sanitário a partir da publicação de Moby-Dick pode ser apreciado por ler um best-seller de não-ficção contemporânea sobre um evento que ocorreu em 1951, que foi 100 anos depois de Melville publicar sua obra-prima: a tomada de células que faria mais tarde ser chamadas de" HeLa "de Henrietta Lacks.

Embora a negligência médica continua a ser uma preocupação, questões jurídicas mais centrais na prática médica contemporânea incluem o caráter fiduciário da relação médico-paciente, direitos e segurança do paciente, o consentimento informado, privacidade, comercialização, a regulamentação da investigação médica e biobanking, o patenteamento de genes e linhas celulares, a aplicação da informação genômica para a prática médica, as disparidades raciais e acesso equitativo aos cuidados médicos de qualidade

O autor de Vida Imortal de Henrietta Lacks, Rebecca Skloot, abre seu livro com as palavras de Elie Wiesel que quase todos os médicos e advogados concordariam que deveria ser aplicada a todos os pacientes, não menos importante por causa do"dever fiduciário"que os médicos devem aos pacientes sob a lei (ética médica):

"Precisamos não ver qualquer pessoa como uma abstração. Em vez disso, temos de ver em cada pessoa um universo com seus próprios segredos, com as suas próprias fontes de angústia, e com alguma medida de triunfo."


 

DAVID CASTRO STACCIARINI é Advogado, especialista em direito médico pela Harvard University e DMI/OPME pelo MIT - Massachusetts Institute of Technology, participou do programa de estudos da Organização das Nações Unidas - Genébra. WHO, WTC, WTO, OHCHR, ITU, UNHCR, IEH e Internacional Commitee of Red Cross, realizou curso de extensão voltado para sistemas de saúde pela Copenhagen University. É também Cofundador da Startup Docway - Maior Plataforma de atendimento médico residencial do País. Como advogado foi Indicado pela Fourth (2013) e Fifth (2014) Edition of Best Lawyers in Brazil - Internacional lawyers. É o primeiro advogado do Brasil a receber autorização do Conselho de Medicina para realizar um estudo sobre sindicância e processo disciplinar no Paraná. Ganhou certificado de honra por sua participação na tribuna livre da Câmara Municipal de Curitiba e na Assembleia Legislativa do Paraná. Autor Colaborador do JUSBRASIL, escreveu mais de 20 artigos publicados, entre eles" Erro Médico - A História da Medicina Legal: 200 anos de Medicina e Direito "," A Disputa Judicial entre as Farmacêuticas e os Genéricos ", e" Erro Médico - A Maior Pesquisa já realizada sobre Processos Indenizatórios nos Estados Unidos ".

Assuntos: Direito à Saúde, Direito do consumidor, Direito Médico, Erro médico, Questões médicas

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