Campanha "Começar de Novo" - funciona?

16/04/2013. Enviado por

A Campanha promovida pelo CNJ denominada “Começar de Novo” que visa a reintegração social de egressos na sociedade em face da disponibilidade das informações de processos criminais à Autoridades Policiais. É legal? Justo?

DAS CONSIDERAÇOES PERTINENTES ACERCA DO TEMA

Nenhum poder dentro do Estado constitucional e humanitário de Direito pode ser absoluto ou ilimitado, dentre os tantos, no caso em questão, destaca-se o “ius puniendi”.

A reabilitação criminal tende a cessar os efeitos, já sofridos, do citado Poder Estatal, de punir entregue, com exclusividade, ao Estado

Não parece razoável e tampouco inteligente manter o egresso às margens da sociedade “ad eternum”. 

Diante disso, indaga-se: surge harmônico com a Constituição manter em arquivos policiais informações sobre processos findos, com sentenças absolutórias, com penas ou pretensões punitivas prescritas?

A resposta mostra-se iniludivelmente negativa.

É certo que o egresso que esteve sob a custódia do Estado ou ainda, que sofreu processo criminal, já se encontra fragilizado, em primeiro lugar pelos  drásticos efeitos da intervenção penal: seu impacto destrutivo e irreversível e os elevadíssimos custos sociais da "cirurgia penal" a que foi submetido.

Em poucas palavras: a atuação punitiva do Estado é qualitativamente drástica e quantitativamente intensa.

DA REABILITAÇÃO CRIMINAL E OS EFEITOS QUE DEVERIAM ADVIR

Em face do quadro punitivo acima relatado o Estado Democrático de Direito em que vivemos, nos traz um “remédio “para tamanho mal sofrido pelo reeducando e à letra da lei e à luz da mais respeitada doutrina, deveria ser o alento a todas as agruras do cumprimento da pena e do curso do processo, vejamos.

A Reabilitação Criminal é definida doutrinariamente como a declaração judicial de que o condenado cumpriu (ou foi julgada extinta por outra forma) a sua condenação, estando apto a viver em sociedade, devendo desaparecer os efeitos decorrentes da sentença criminal e ser imposto sigilo sobre os registros dos antecedentes criminais.

Traduz-se em efetiva demonstração de emenda do delinqüente.

Constitui, também, uma espécie de reafirmação de que a pena cumpriu seus almejados efeitos, principais e secundários, podendo, esses últimos, constituir-se numa carga, às vezes mais onerosa que a pena principal para o sentenciado, dados suas deletérias conseqüências.

O objeto da reabilitação alcança quaisquer penas impostas, as penas acessórias (se previstas), os efeitos da condenação (incapacidades, perda de empregos ou cargos, etc.) e as anotações dos registros, significando assim,  restabelecer juridicamente o prestígio social de um condenado dentro da comunidade.

Mas a melhor definição do instituto, porém longínqua da realidade, pode ser obtida consultando-se a Exposição de Motivos do Código Penal, item 83, verbis:

 

“A reabilitação não tem, apenas, o efeito de assegurar o sigilo dos registros sobre o

processo e a condenação do reabilitado, mas consiste, também, em declaração judicial

de que o condenado cumpriu a pena imposta ou esta foi extinta, e de que, durante dois

anos após o cumprimento ou extinção da pena, teve bom comportamento e ressarciu o

dano causado, ou não o fez porque não podia fazê-lo. Tal declaração judicial reabilita

o condenado, significando que ele está em plenas condições de voltar ao convívio da

sociedade, sem nenhuma restrição ao exercício de seus direitos”

 

Longe da determinação legislativa, contrariando ainda a Constituição Federal encontra-se a realidade enfrentada por ex-presidiários em todo o Território Nacional.

Veiculada sob o slogan: “A VERDADEIRA LIBERDADE É TER UMA SEGUNDA CHANCE” surgiu a Campanha “COMEÇAR DE NOVO” promovida pelo Conselho Nacional de Justiça.

A bem de ver manifestações da mídia e apoio de diversos órgãos sobrevieram ao lançamento da campanha, porém, o que parece mais prático e interessante a se fazer no presente caso nos parece longe de acontecer.

Ao apenado, não se pode negar, a verdadeira liberdade acontece com a saída não só da prisão mas do convívio com os criminosos contumazes e sua resinserção no seio da sociedade, a recuperação do respeito de seus pares e do prestígio que goza o cumpridor de suas obrigações, o honesto, aquele que não tem máculas a serem apontadas por aqueles de seu convívio.

Aclarando o entendimento aqui esposado, segue trecho de sermão proferido pelo venerando Padre Antonio Vieira acerca da honra, o qual tem o condão de demonstrar a sua importância capital e a necessidade extrema de sua reparação, questão esta que ocupa a humanidade desde sempre, em todo o curso de nossa história, pois apenas aquele que não tem ele próprio honradez deixa de se importar com a honra alheia:

"É um bem imortal. A vida, por larga que seja, tem os dias contados; a fama, por mais que conte anos e séculos, nunca lhe há de achar conto, nem fim, porque os seus são eternos. A vida conserva-se em um só corpo, que é o próprio, o qual, por mais forte e robusto que seja, por fim se há de resolver em poucas cinzas. A fama vive nas almas, nos olhos, na boca de todos, lembrada nas memórias, falada nas línguas, escrita nos anais, esculpida nos mármores e repetida sonoramente sempre nos ecos e trombetas da mesma fama. Em suma, a morte mata, ou apressa o fim do que necessariamente há de morrer; a infâmia afronta, afeia, escurece e faz abominável a um ser imortal; menos cruel e mais piedosa se o puder matar".

Não é normal impor-se ao condenado, uma vez cumprida a pena, que ainda carregue seus efeitos.

Cabe ao Poder Judiciário órgão que fez cessar a privação de direitos que ele, em virtude de sentença firme, havia imposto, fazer cessar, também, seus efeitos.

A remota raiz do instituto da reabilitação criminal e o sigilo das informações após o preenchimento de suas condições, encontramos sua remota raiz nas Ordenações Filipinas.

Com efeito, o Título 130, número 3, do Livro V, das Ordenações, cuida do Perdão oferecido pelo Rei, enquanto que o Título 125, número 06, determina o registro dos livramentos e perdões, “ao pé de cada assento”, constantes no “Livro Ordenado per Alfabeto”.

Assim determinado, FAZIA-SE DESAPARECER os registros de antecedentes, cuja menção era possível apenas nas folhas corridas destinadas aos juízes, verbis:

 

E para os Scrivães com mais facilidade responderem ás folhas, fará cada hum, hum

Livro Ordenado per Alfabeto, com os nomes dos culpados, e das culpas, e tempos

dellas, e dos degredos; e ao pé de cada assento registrarão os livramentos e perdões,

que os culpados houverem, e de todo farão declaração nas respostas, que derem ás

folhas, para os Julgadores bem informados procederem como lhe parecer Justiça.

 

Ora, se nas Ordenações Filipinas, que antecederam o Código Civil de 1916 já havia determinação expressa para que os registros criminais fossem mantidos em sigilo, por qual motivo até os dias atuais, tais dados permanecerem abertos a consulta (livre) de qualquer policial?

E mais ainda, o constrangimento e de fato sublime, que impede egressos, por exemplo, de serem admitidos em cargos públicos, sob o manto da não admissibilidade em face da “investigação social”?

Não há motivação jurídica plausível para enfrentarmos este tipo de questão. A indagação do cidadão que acionou o Conselho Nacional de Justiça é totalmente pertinente.

É por demais cediço que a reabilitação criminal não rescinde, de forma alguma, as condenações anteriores de modo que, se o condenado vier a praticar novo delito dentro do prazo do art. 64, I, do CP, será considerado reincidente.

Porém, se houve a comprovação de sua reabilitação, e a partir daí não delinqüiu novamente, não é aceitável que viva sob o temor de deparar-se com seus antecedentes, por exemplo, em uma “batida policial”, ou pior, ser impedido de ingressar em cargo público para o qual foi aprovado em concurso.

Não se  pode impedir que o reabilitado se candidate a cargo ou função pública, por concurso, ou se candidate ao exercício de mandato eletivo de qualquer natureza.

Com efeito, o art. 202 da LEP assegura que cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei, De modo que o sigilo sobre os antecedentes, deveria ser automático.

Não é o que acontece, contudo.

A “falha” do sistema de cumprimento de penas e comunicação entre órgãos do Poder Judiciário e Polícia Judiciária que fere mortalmente o dispositivo acima mencionado, foi admitida, inclusive pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal Ministro Gilmar Mendes, ao lançar a aludida campanha, declarou :

“Não existe Justiça quando alguém já pagou o que deve e mesmo assim continua punido numa clara violação dos direitos humanos e infelizmente isso acontece de forma sistemática em nosso país”

O instituto da reabilitação criminal, e os dispositivos atinentes à matéria teriam um grande alcance, na medida em que deveriam garantir o sigilo sobre os processos suportados pelo reabilitado, o que lhe assegura o direito à intimidade, protegendo-o da mácula de condenações que, certamente, poderiam tisnar-lhe o futuro,  impedindo-o de se reintegrar à sociedade.

Um condenado ao deixar a prisão, só pode contar com sua sorte, para conseguir uma vaga no estreitíssimo mercado de trabalho.

Considerando-se que a grande maioria dos condenados não tem qualificação profissional quando entram nos presídios e lá não a recebem, e que o efeito recuperativo da prisão é cada vez mais um ideal intangível, a vis atractiva do crime é muito grande, sobre os egressos do sistema prisional,  atuando como verdadeiro fator de reincidência.

Ora, a própria ONU já determinou que a responsabilidade do Estado para com o preso não termina com sua libertação, devendo àquele assistir a este, para que não volte a delinqüir.

Então, por que não criar mecanismos que possibilitem a real inserção do condenado no mercado de trabalho?

A mesma sociedade que negou, ao condenado, os meios que lhe permitiriam viver condignamente, votando-o ao crime, criou formas de “reabilitar” quem já cumpriu pena, sem obrigá-la a aceitá-los, através da ausência de políticas públicas, de leis, nesse sentido.

Em se tratando de impossibilidade de equiparação aos egressos que já não “devem” mais a sociedade, visto que cumprida a pretensão punitiva do Estado, em nossa opinião conclui-se que dever-se-ia respeitar os ditames do instituto da Reabilitação Criminal, com a unificação in totum dos cadastros e apontamentos atualmente existentes.

Com isso, acredita-se que tal alteração de fundamental importância fará com que os egressos, após o devido cumprimento da pena, passem a ter uma expectativa de melhores condições de retorno ao convívio social, não havendo assim quaisquer discriminações, cerceamentos, até para os aventurados que desejarem ingressar em carreiras públicas, extraindo-se a imposição discriminatória que consta da maioria dos editais para cargos públicos de declaração de antecedentes criminais.

 

GUSTAVO BRACCO

OAB/SP 187.552

Assuntos: Criminal, Direito Penal, Direito processual penal

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