A modernidade da desigualdade e a corrupção brasileira

05/11/2013. Enviado por

A modernidade brasileira envolve inclusão social, é branca e excludente, que molda o país com alarmante desigualdade. Embora a Constituição garanta um amplo conjunto de direitos, não podemos somos detentores de direitos em razão da assimetria nas rel

"Felicidade é algo que todos desejam e ao mesmo tempo renegam, pois não saberiam lidar com algo que os deixassem soltos e leves. O Ibope ruim junto à elite intelectual associou a superficialidade à felicidade, enquanto sofrimento produz arte e filosofia. Nesse viés, ser deprimido é charmoso. Pena que seja só estereótipo.” (Martha Medeiros).

Em que pese o viés ideológico do moderno, o sociólogo Stuart Hall não liga modernidade a moralidade, justiça ou ética. Para o autor, o projeto político-ideológico moderno, ou a sua superação, deveria permitir à humanidade se emancipar e ter uma “boa vida”, cumprindo, na prática, a promessa de felicidade plena. Como emancipadora e exercendo influência sobre a luta política ocidental e o pensamento acadêmico, a modernidade é o passaporte da libertação, hoje permeada pela corrupção.

Pensar modernidade no Brasil envolve inclusão e exclusão social. Prevalece a modernidade branca e excludente, que molda o país e mantém índices de desigualdade alarmantes. Embora a Constituição de 1988 garanta amplo conjunto de direitos, os brasileiros não se reconhecem detentores desses direitos, em razão da marca fundante das relações de poder dentro e fora da política nacional. E isso tem a ver com o fenômeno da corrupção.

Iris Marion Young, doutora filósofa e cientista política especializada em direitos humanos, divide exclusão social em externa e interna. Esta ocorre se o cidadão, embora reúna condições formais de participação, tem sua opinião desconsiderada como indivíduo ou grupo. Aquela, se o poder é desigual e os recursos econômicos impedem cidadãos com mesmos direitos formais de terem igual condição de participação política na tomada de decisão.

A luta pelo fim da ditadura militar encontrou, no tempo e no espaço, várias outras lutas. Dos anos ditatoriais até o final da primeira década deste século, houve significativas mudanças. Os inegáveis avanços contrastam com a permanência de padrões tradicionais nas relações sociais e na distribuição de poder, repercutindo na manutenção de práticas ilícitas na política como um modo de governar.

A dinâmica da inclusão e exclusão mostra o prisma das relações de poder no Brasil. As inclusões sociais não têm resultado em modos mais justos de vida para os novos incluídos socialmente. Em tese, quanto mais inclusiva a sociedade, mais democrática seria a repartição de riqueza e de poder político. Em decorrência, maior seria o controle social e menos espaço haveria para as elites econômicas e políticas apropriarem-se das riquezas públicas.

Contudo, há um desencontro entre as inclusões e as mudanças efetivas nas posições relativas dos detentores do poder econômico e político. A voz e o reconhecimento de direitos dos novos inclusos funcionam como freios ao poder do outro, até então sem limitações.

Há um paralelo entre o que Young entende por inclusão interna e Nancy Fraser, como participação paritária. No cenário brasileiro, o desencontro estaria nos direitos constitucionalmente assegurados e as possibilidades de usufruí-los. Esse desencontro é uma condição primordial para a legitimidade da hierarquia das desigualdades. É nessa condição que habitam as possibilidades de corrupção, nepotismo e outros ilícitos de similar natureza.

Jessé José Freire de Souza, doutor em sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg (Alemanha), mostra sua gramática social da desigualdade brasileira e aponta a existência do fenômeno da europeização de parte da população, em contraste com outra parte da população não europeizada. Para o professor, é essa modalidade de desigualdade que caracteriza a nossa modernidade atual.

Souza explica que há uma linha que divide os setores “europeizados” adaptados às novas demandas produtivas e sociais de europeização, pela importação de ‘artefatos prontos’ das instituições europeias e os setores “não europeizados”, precários, que tendem, pelo abandono, a uma crescente e permanente marginalização. Reflete ele que a questão da sociedade hierárquica brasileira explicaria o que ele denominou ralé estrutural, produzida pela naturalização da desigualdade.

Nessa esteira, a modernidade brasileira traz duas constatações: a uma, ninguém se sente constrangido a cumprir a lei; a duas, todos se sentem desiguais ou “mais iguais”. Isso vale para elites, que não se submetem às normas, mas as criam para subverterem-na e para as classes populares, que não conseguem fazer valer seus direitos, até por não saberem quais são, e não cumprem as regras, exceto se esse descumprimento vier a ameaçar a “ordem pública” (violência).

No meio, uma classe média que se conforma com burlas variadas, como fraudar a declaração do imposto de renda, não obedecer ou transgredir as leis de trânsito e participar de pequenos atos ilícitos, corrompendo agentes estatais da baixa burocracia ou sendo o próprio agente, entre outras. Nesse diapasão, a classe média é a campeã de pequenos delitos.

A classe média, em regra, porta um discurso moralista, anticorrupção, conservador e não igualitário e se julga portadora de direitos diferenciados. Acredita que o status social advém do mérito pessoal em relação aos de baixo. É constituída de pessoas que parecem conviver, sem contradição. Lutam pelos direitos humanos, pelo modismo ambientalista, pela sofisticação intelectual e pela defesa de reformas sociais progressistas, entre outras.

Ao mesmo tempo, esse indivíduo explora o empregado doméstico e pratica os inúmeros pequenos delitos. Se por acaso detiver uma posição que lhe confira autoridade pública, poderá se corromper ou compactuar com costumes antiéticos no trato da coisa pública.

José Maurício Domingues, professor de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), endossa a hipótese de que a corrupção decorre da maneira como é constituída a nossa modernidade, cuja gênese está no modo de governar por intermédio de processos de inclusão social que mantiveram e mantém as desigualdades. A corrupção é um elemento articulado, que está a exigir mais que uma mera indignação sincera ou midiática para ser superada. 

Assuntos: Direito Administrativo, Direito Constitucional, Direitos humanos

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