O Boletim de Ocorrência de Preservação de Direitos e o Papel Higiênico

27/11/2014. Enviado por

O Boletim de Ocorrência de Preservação de Direitos será que preserva, realmente, alguma coisa?

Calma, amigo leitor! Não fiquei doido, não! O tema acima é de propósito, para fixar melhor. Para que se lembre desta matéria, por muitos e muitos anos!

Sempre que nos deparamos com algum problema que nos aflige, principalmente quando percebemos que temos que registrar alguma coisa que é caso “de polícia”, 9 entre 10 pessoas pensam: vou registrar um B.O. (Boletim de Ocorrência) de “Preservação de Direitos”. Isso já se enraizou na cultura do povo brasileiro. Virou costume. É automático!

Mas será que realmente este B.O. preserva alguma coisa?

Vejamos: pegou fogo no canavial (fato muito comum em nossa região) ou na mata, sendo que o fogo “veio lá de baixo”, do vizinho, que havia colocado fogo no mato que cortou para limpar o terreno, e esse fogo se alastrou por toda a vizinhança, passando de pasto em pasto, de roça em roça, de talhão em talhão, “lambendo tudo”, como diz o caipira. A lavratura de “B.O. de preservação de direitos” vai preservar alguma coisa a favor da pessoa que sofreu o prejuízo? Claro que não!

Neste caso, o ideal é fazer a lavratura de um Boletim de Ocorrência de Autoria Conhecida (autoria = o vizinho) para Investigação de Incêndio Criminoso (materialidade = os fatos e as provas). Resumindo: B.O. de incêndio. Quem fez B.O. de preservação de direitos, não preservou nada!

Outro caso: o vizinho deixou um boi solto no canavial. O dono da cana já ligou, conversou, insistiu, discutiu, brigou, xingou, etc., e o boi continua pastando gostoso... Qual a solução? Bater uma foto do boi, bem enquadrado, com celular mesmo. Algumas fotos de perto. Uma foto bem nítida da marca do dono no boi (a propriedade do animal se prova com a marca) e fazer um Boletim de Ocorrência de Autoria Conhecida por Crime de Dano. Isso se for querer processar criminalmente o dono do animal e tiver gravações das conversas, das brigas, testemunhas, etc. No máximo, irão perder tempo com o processo e o dono vai pagar cesta básica. Ou ficar “assinando” no Fórum. A cobrança do prejuízo, através de ação de indenização por danos materiais (porque no caso de danos morais, os juízes entendem que é um “mero aborrecimento” do cotidiano; da vida) pode ser que resolva e seja mais eficiente, porque dói no bolso, já que é a parte “mais sensível” do ser humano. Boletim de Ocorrência de preservação de direitos, nem pensar!

Clóvis Mendes afirma que “situação bastante comum, ao menos em delegacias do Estado de São Paulo, é aquela em que o cidadão ali comparece e solicita o registro de um boletim de ocorrência de "preservação de direitos", noticiando fato penalmente atípico, isso facilmente perceptível pelo policial responsável pelo atendimento, mesmo que ele não tenha formação em Direito” (in http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI78739,41046-Boletim+de+ocorrencia+de+preservacao+de+direitos – acesso em 08.10.2014). Ou seja: lavra-se algo inútil, aos olhos da polícia (fato penalmente atípico). Não irão investigar nada.

Já Fernando da Costa Tourinho Filho afirma que "a função precípua da Polícia Civil consiste em apurar as infrações penais e a sua autoria. Sempre vigilante, pondera Pimenta Bueno, ela indaga de todos os fatos suspeitos, recebe os avisos, as notícias, forma os corpos de delitos para comprovar a existência dos atos criminosos, sequestra os instrumentos dos crimes, colige todos os indícios e provas que pode conseguir, rastreia os delinquentes, captura-os nos termos da lei e entrega-os à Justiça Criminal, juntamente com a investigação feita, para que a Justiça examine e julgue maduramente (Processo penal brasileiro, p. 11)" (in Processo Penal 1, 27ª Edição, Editora Saraiva, 2005, p. 192).

Clóvis Mendes, no mesmo site acima indicado, afirma que o Manual de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado de São Paulo (2000) esclarece que boletim de ocorrência "é o documento utilizado pelos órgãos da Polícia Civil para o registro da notícia do crime, ou seja, aqueles fatos que devem ser apurados através do exercício da atividade de Polícia Judiciária" (p. 73) e "presta-se fielmente à descrição do fato, registrando horários, determinados locais, relacionando veículos e objetos, descrevendo pessoas envolvidas, identificando partes, etc." (p. 74).

Também pondera que o próprio Manual, no entanto, reconhece e admite a lavratura dessa "espécie" de boletim de ocorrência, ressaltando: "Além dessa função principal, o boletim de ocorrência é utilizado largamente para registros de fatos atípicos, isto é, fatos que, muito embora, não apresentem tipicidade penal – não configurando, portanto, infração penal -, merecem competente registro para preservar direitos ou prevenir a prática de possível infração, sendo conhecidos, consuetudinariamente, pela denominação de boletim de ocorrência de preservação de direitos" (p. 74). Ou seja: mesmo não prestando para nada, lavram este B.O.

Ainda, complementa que “o costume de certos profissionais ou repartições pedirem ou exigirem que o civilmente lesado providencie o registro do tal B.O. de preservação de direitos beira o comodismo ou a falta de conhecimento para redigir uma notificação, uma representação ou uma simples declaração. Sem contar que o submete a uma via crucis desnecessária!”.

Diz a lenda que esse “B.O. de preservação de direitos” foi criado por um delegado que, estando de plantão, de madrugada, em sua própria casa, recebeu a ligação do escrivão, perguntando o que poderia ser registrado numa determinada ocorrência. Sonolento, o delegado teria dito: “Registra um B.O. de preservação de direitos. Amanhã vejo isso”. E não pararam mais de registrarem esse tipo de “ocorrência”.

Para arrematar, temos parte de uma decisão judicial, prolatada pelo Dr. Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira, juiz de direito da 2ª Vara Judicial de Penápolis/SP, a qual se encontra no Processo nº 0013645-30.2009.8.26.0438, sendo que ele afirma que “(...) No próprio histórico do boletim que o requerente registrou na Delegacia local em maio de 2009, intitulado “preservação de direitos”, ficou consignada a duplicidade do número de identidade, mas ressalvada a inexistência de ordem de prisão (fl. 24). Trata-se de registro unilateral da ocorrência dos alegados transtornos. O que verdadeiramente preserva direitos são provas e não declarações unilaterais. Fui Delegado de Polícia por mais de 9 anos e sempre questionava a utilidade da tal ocorrência de “preservação”, cuja lavratura me recusava a fazer por conta da inutilidade. (…)”. Resumindo: o próprio juiz acima, que já foi delegado de polícia, afirma que o B.O. de preservação de direitos não presta pra nada. É inútil!

Com isso, fecho o tema: mais vale um papel higiênico que um B.O. de preservação de direitos. O papel higiênico é mais macio e funciona melhor!

E não se esqueçam: na dúvida, procurem a orientação jurídica de um advogado! 

Nilson de Carvalho Vitalino, advogado do SIRP, é capacitado tecnicamente pela FAESP para os assuntos jurídicos ambientais, membro da Comissão de Assistência Judiciária de Penápolis (“Advogados do Estado”), membro da Associação dos Advogados de São Paulo, Conselheiro indicado pela OAB junto ao CDI (Conselho de Desenvolvimento Industrial) de Penápolis e advogado trabalhista desde 1998.

Assuntos: Boletim de ocorrência, Criminal, Direito Penal, Direito processual

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