A Judicialização da Saúde no Brasil e a necessidade de justiça especializada

25/01/2012. Enviado por

Referido artigo aborda a problemática da saúde no Brasil e sua necessidade de uma justiça especializada.

O setor de saúde suplementar brasileiro emergiu em razão da ausência do Estado no cumprimento de suas funções essenciais. O baixo investimento em estrutura básica de saúde fez com que a população procurasse alternativas em serviços particulares, e veio seguindo o modelo adotado por empresa multinacionais que aqui se estabeleciam e que tinham, entre os benefícios oferecidos aos seus empregados, a assistência suplementar à saúde.

A saúde suplementar tem papel fundamental na cobertura da população brasileira, visto que assiste a parte considerável dessa, 23,4%, o que representa quase 45 milhões de pessoas.

O número de reclamações judiciais aumentou com o advento da legislação reguladora dos planos de saúde, uma vez que prevalecia nessa época o que era estabelecido pelas operadoras e seguradoras que operavam com planos de saúde. Somente após a publicação do Código de Defesa do Consumidor, que ao mitigar o princípio do pacta sunt servanda, passou a levar em consideração a hiposuficiência do consumidor em relação ao poderio econômico das empresas.

Na cronologia da regulação, a Agência Nacional da Saúde Suplementar foi criada no ano 2000, através da promulgação da Lei nº 9.961, portanto, após o CDC. Isto sugere que os critérios de temporalidade e especialidade militam a favor da regulação da ANS.

Mesmo com a referida regulamentação, a instabilidade foi dominante, visto que após a sua publicação, foi seguida por inúmeras alterações por força de medidas provisórias. Essas alterações seguem até os dias atuais, adicionando novas obrigações a serem cumpridas por parte das operadoras e pelo aumento das coberturas.

A nova legislação não resolveu também as questões relacionadas aos planos anteriores a ela, sendo arguido pelas operadoras que uma nova lei não poderia alterar contratos celebrados sob a égide da legislação antecedente, sendo que a solução encontrada pela ANS foi a criação de programas para que os usuários pudessem migrar para planos regulamentados e com maiores coberturas de assistência. A solução não agradou à população e às associações, os órgãos oficiais de defesa do consumidor, interpelando judicialmente a Agência Reguladora, aumentaram o número de demandas.

Na prática os usuários de planos antigos preferem resolver seus direitos na Justiça a pagar mais caro para que seus planos passem a ter a cobertura estabelecida na lei nova. Por outro lado, muitas operadoras insistem em negar procedimentos que estão previstos pela legislação, mas em razão dos valores envolvidos. Preferem correr o risco e só terminam cedendo após sucessivas condenações judiciais ou severa ameaças da ANS.

Mas as questões que geram e geravam demandas judiciais não estão circunscritas aos ditos planos não regulamentados. Muitas questões são suscitadas, desde percentuais de reajustes, materiais e medicamentos importados e não nacionalizados; procedimentos e medicamentos experimentais; até questões relacionadas às carências de cobertura e exclusão de tratamentos por doenças e lesões pré-existentes.

Com reiteradas decisões dos Tribunais e do Superior Tribunal de Justiça pela adoção do CDC no trato com os planos de saúde, o Judiciário reagiu com a emissão de Súmula pacificando o assunto, por entender que plano de saúde tem trato sucessivo, e sendo renovado anualmente, deve ser analisado à luz do código consumerista.

Os atores envolvidos no mercado da saúde suplementar têm argumentos próprios e legítimos de acordo com seus pontos de vista e interesses. Os usuários entendem ter o direito à assistência integral à saúde sendo que, não raro, buscam a cobertura a tratamentos que não foram albergados pela própria regulação, como alguns tipos de transplantes[1] ou inseminação artificial.

Por outro lado, as operadoras brigam para não terem os seus custos majorados e alegam que novos procedimentos não foram previstos em seus cálculos atuariais, bem como terão problemas financeiros face às exigências para o cumprimento de obrigações que lhes são exigidas, como provisões para eventos ocorridos e não avisados; com lastros financeiros líquidos para cobertura de riscos futuros, conforme o tamanho da carteira de clientes.

Questão delicada diz respeito à incorporação de novas tecnologias, visto que enquanto os consumidores defendem que a saúde não tem preço, as operadoras se defendem dizendo que a saúde não tem preço mas tem custo.

Em razão do crescente número de processos que chegam à Justiça em todos os níveis, o Conselho Nacional de Justiça resolveu emitir recomendação para que tribunais e Juízes fizessem uso de alguns critérios na solução dos casos da saúde suplementar e da saúde pública.

O CNJ recomendou maior parcimônia na liberação de produtos importados, materiais e medicamentos, uma vez que a ANVISA determina que, para utilização no Brasil, esses produtos devem ser registrados naquela agência de vigilância.

Recomendou também o CNJ, o aparelhamento dos tribunais para assessoria aos magistrados na decisão de casos relacionados à saúde, e a alteração do currículo dos cursos de formação e aperfeiçoamento dos magistrados para que passem a estudar também assuntos relacionados ao assunto.

Pensando-se no problema complexo apresentado ao longo do presente estudo, as demandas judiciais relacionadas à cobertura à saúde, seja pelo lado da saúde pública, mandamento constitucional, seja pelo lado da saúde privada, que complementa a primeira, é que se pretende discutir a urgência de implantação varas especializadas em ações propostas sobre esse tipo de demanda. A omissão dos entes públicos, Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, terminarão por levar o sistema ao colapso, com afetação inicial do serviço de saúde pública e depois do sistema privado na prestação de serviços de saúde complementar.

No Brasil existem discussões sobre a necessidade de criação de juizados e varas especializadas em diversas áreas como direitos autorais e de propriedade intelectual, direito trabalhista, em violência doméstica, direito dos idosos, varas especializadas em matéria ambiental e em muitos outros assuntos, cabendo então que se abra a discussão para um assunto que é de extrema importância: a saúde e bem-estar da população brasileira. Juizados e varas especializadas com profissionais de saúde para suporte às decisões dos magistrados são uma urgência. Conforme já comentado, muitas demandas que são encaminhadas à Justiça estão fundamentadas no risco de morte dos requerentes, tratamentos em caráter de emergência, mesmo para o pedido de tratamento em SPA. Não se pode esperar que o magistrado, diante de tão graves riscos que são alegados, denegue o seguimento de uma medida liminar em razão do que está posto em atestados médicos acostados aos autos, para dar vazão a pedidos espúrios (IBRAJUS, 2011, online).

A especialização do Poder Judiciário, com o suprimento de equipes multidisciplinares para solucionar as questões relacionadas aos problemas da saúde, tanto do sistema privado como da saúde suplementar, poderá permitir significativa economia do Poder Judiciário e do sistema como um todo. Do lado das operadoras pelo barramento para concessão de benefícios não previstos em seus cálculos atuariais e que lhes são obrigados por força de determinação judicial. Pelo lado dos usuários, estes podem ter acesso mais rápido aos seus direitos, inclusive com a redução dos preços dos planos de saúde uma vez que no final das contas quem paga é o consumidor. Pode-se esperar maior isonomia de tratamento.

Em relação ao Poder Judiciário, a especialização da Justiça, com a implantação de varas especializadas na solução de demandas de saúde, poderá trazer benefício pela redução do número destas, pela uniformização das decisões, sendo possível também maior celeridade na solução das questões discutidas.

Ainda sob outro aspecto a criação de varas especializadas para tratamento das questões da saúde suplementar pode alavancar o princípio da separação dos poderes, com a mitigação do poder discricionário do Judiciário e respeito ao mérito regulatório, podendo, inclusive, devolver ao Legislativo e ao Executivo as correções necessárias da legislação e dos atos administrativos, conforme defendido por Teixeira (2008, online, grifo original):

Assim, caso o magistrado apure, por meio de exame das provas trazidas aos autos, notadamente a prova pericial, que a opção do ente regulador, apesar de não ser a única, é tão adequada, necessária e vantajosa quanto às demais apontadas pela técnica ou, pelo menos, que haja uma dúvida razoável a respeito de qual seja a melhor solução, deve o juiz manter intacta a decisão do ente regulador, pois, aí, o julgador estará diante de verdadeira discricionariedade ou mesmo do mérito do ato regulatório, que deve ser respeitado, por uma presunção, assentada na divisão de funções entre os órgãos do Estado, de que a Administração é que está legitimada a tomar essa decisão.

Ainda sob essa perspectiva, qual seja, a necessidade de limitação do controle jurisdicional dos atos regulatórios, a fim de preservar o princípio da separação dos poderes, cumpre sublinhar que,assim como ocorre com os atos administrativos em geral, o controle jurisdicional deve ser, em regra, de caráter negativo – o juiz, caso constate vícios no ato, deve se limitar a desconstituí-lo, devolvendo a matéria para análise da Administração – e, excepcionalmente, positivo – situação em que o magistrado, para além de anular o ato, determina qual o ato a ser praticado.

Outro instrumento importante que poderia igualmente contribuir para melhorar a relação entre operadoras e consumidores é a constituição de câmaras de conciliação especializadas na solução de conflitos da espécie, que poderiam contribuir sobremaneira para a redução do número de processos no Judiciário. Em alguns Estados existem associações de usuários de planos de saúde que têm funcionado como facilitadores na solução de conflitos entre usuários e operadoras, mas que servem também para facilitar o acesso de usuários ao Judiciário. Podem ser citadas como exemplo a Associação de Defesa dos Usuários de Seguros, Planos e Sistema de Saúde (ADUSEPS), de Pernambuco, Associação dos Usuários de Planos de Saúde do Estado de São Paulo (AUSSESP) e Associação dos Usuários do Estado de Pernambuco (ADUSESP).

Passados vinte e dois anos desde a criação do SUS e onze anos da regulamentação tímida e parcial da saúde suplementar, essas iniciativas não foram suficientes para a correção dos vícios existentes e para o atendimento adequado à população. Com o estudo do assunto e sob os aspectos aqui abordados, conclui-se pela necessidade de criação de varas especializadas para o tratamento das questões relacionadas à saúde pública e suplementar; não sendo a solução definitiva para os problemas do setor, porém, o caminho da especialização aponta para a padronização das normas do setor da saúde suplementar, como é almejado pelas operadoras de saúde, visto que fica fácil a determinação de seus custos no momento que se mitigam as incertezas.

A especialização da Justiça para a saúde suplementar concorre também para a redução dos custos envolvidos com os processos judiciais que se avolumam a cada dia, tornando possível uma Justiça mais célere e traduzindo-se, ao final, em melhoria de atendimento aos consumidores de planos de saúde, e com custos menores, pois conforme determinação do mercado, o aumento dos custos das operadoras se traduz em aumento dos preços e dos reajustes, devendo esse montante ser bancado pela população consumidora, principalmente aquela que possui planos de saúde ditos regulamentados.

Referências

INSTITUTO BRASILEIRO DE ADMINISTRAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO -  (IBRAJUS). Disponível em: <www.ibrajus.org.br>. Acesso em: 10 mar. 2011.

TEXEIRA, Leopoldo Fontenele. Controle jurisdicional dos atos regulatórios. 2008. Disponível em: <http://www.jfce.gov.br>. Acesso em: 13 mar. 2011. 


[1] O Rol de Procedimentos da ANS prevê cobertura para transplantes de rins, córneas e medula óssea.

Assuntos: Direito Constitucional, Direito Público, Saúde

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