Cotas Raciais como medida de justiça social

03/06/2012. Enviado por

As ações afirmativas como meios de justiça social. Esse artigo é uma análise sobre a importância das cotas raciais para o Brasil, demonstrando o respeito ao Princípio da Igualdade e o combate ao preconceito

As ações afirmativas vêm como modo de inclusão social. É a inclusão de um povo que foi marginalizado pelas elites brasileiras. Os negros vieram ao Brasil para trabalhar como escravos essencialmente nos latifúndios deste país.

Nessas grandes fazendas o único direito que tinham era trabalhar até a exaustão e se reproduzir como gado, pois era mais “negrinho” para a lavoura e mais poder. O tráfico negreiro era um grande comércio no período do Brasil colonial. Os negros, com abenção da Igreja Católica, não eram vistos como seres humanos. Na feira, como eram vistos como simples mercadorias, eles eram avaliados observando pernas, dentes, quadril. No latifúndio, os escravos viviam de forma degradante. A habitação deles era uma senzala, “um curral” para colocar todos que sofriam com a escravidão.

Ainda os escravos sofriam castigos das formas mais degradantes e desumanas. Eram vítimas de açoites, prisão em troncos, dentre outros. A abolição da escravatura acontece em 13 de maio de 1888. Internamente, agiam com firmeza os grupos abolicionistas, que lutavam contra os senhores de escravos. Esses grupos financiavam as fugas dos escravos para os quilombos e para outras cidades. E os quilombos foi outra fonte de resistência. Interessante citarmos atuação do jurista e abolicionista Luiz Gama[1]:

"É interessante nos lembrarmos neste momento de Luiz Gama, que foi um dos maiores intelectuais negros da história brasileira e um grande jurista. Sozinho e a partir das leis, ele libertou mais de 500 negros escravizados. Um de seus principais argumentos era pautado justamente na noção de propriedade, segundo a qual, nenhum dono poderia tratar seus bens com descaso. Dessa forma, os escravizados (que eram tidos como propriedades) seriam salvaguardados pela lei e teriam sua liberdade totalmente justificada nos casos de grandes abusos. Muitos escravizados que haviam assassinado seus “donos” também foram libertos por Gama a partir da premissa de que, se a propriedade for mal tratada, ela mesma pode legitimamente se voltar contra seu “dono”.  A interpretação jurídica de Luiz Gama já foi criticada pelo fato dela ser totalmente imersa no arcabouço regulador do liberalismo, mas não podemos negar que ele fez um grande exercício jurídico, evidenciando justamente os limites de tais princípios liberais."

O movimento abolicionista foi fruto da década de 1880. O grupo se dividia em quem queria a extinção gradual da escravidão e outro que queria abolição total. Como exemplo desse último temos o exemplo a Sociedade dos Caifazes, um movimento abolicionista radical, que se especializou em incentivar e organizar fugas de cativos[2].

Agora o que mais pesou para o fim da escravidão no Brasil foi a pressão da Inglaterra. Este país foi o berço da Revolução Industrial e seus produtos precisavam de mercados consumidores. O regime escravocrata impedia isso. O Brasil, devido às fortes pressões do Império Britânico, aboliu a escravidão. Claro fica que abolição não acontece por uma consciência humanitária, mas por questão do mercado. O ser humano sempre abaixo da necessidade do mercado.

A abolição da escravidão apenas garantiu a liberdade dos escravos, mas em nada alterou a situação socioeconômica dos agora ex-escravos. Estes não receberam nenhuma indenização dos “seus” senhores, assim como não obtiveram nenhum apoio do Estado brasileiro. Muitos permaneceram nos latifúndios em que viviam. Outros foram para as cidades, ocupando as periferias delas, mas sem a preocupação do império brasileiro para urbanizar esses “guetos” e qualificar os negros para o “deus mercado”. Poucos negros possuíam acesso ao conhecimento. Em sua grande maioria foram mantidos fora do conhecimento das letras e do aprendizado.

Como foi demonstrado, os negros, com abolição da escravatura, continuaram na miséria, sem escolaridade e sofrendo com a discriminação de uma sociedade preconceituosa e racista, como é a população brasileira até hoje. Eles permaneceram excluídos da cidadania, que é exercida por cidadãos. Qual o significado desta última palavra? Definição do sociólogo Herbet de Sousa[3]:

“Cidadão é um indivíduo que tem consciência de seus direitos e deveres e participa ativamente de todas as questões da sociedade. Tudo o que acontece no mundo, acontece comigo. Então eu preciso participar das decisões que interferem na minha vida. (...)”

Ora, os negros ficaram à margem da cidadania. Sempre vistos como bandidos, como subumanos, sua participação nas questões do país era difícil. Havia poucas oportunidades para eles. Por isso hoje a população afro-descendente possui os índices sociais que o IBGE[4] aponta: em todas as faixas de escolaridade a renda por hora de pretos e pardos é pelo menos 20% inferior a dos brancos; entre as famílias 1% mais rico apenas 16% são pretos e pardos; entre empregados domésticos sem carteira assinada, 21,3% são pretos e pardos, enquanto os brancos são apenas 6%.

Ressalta-se que os negros possuem baixa escolaridade não por questão de convicção, mas por necessidade. As escolas eram para os brancos e abastados. Para de ter uma idéia, quando os europeus vieram formar a massa assalariada eles tinham direito ao acesso à escola na sua língua original. Restavam aos ex-escravos os serviços menos remunerados e mais pesados.

O que foi escrito acima explica a situação dos negros hoje no Brasil. As ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas destinadas a resgatar uma dívida social aos grupos que tenham e ainda são vítimas de discriminação. Esses tipos de políticas afirmativas não é coisa nova no Estado brasileiro. Em 1968, foi aprovada a Lei nº 5.465/1968, que era intitulada lei do boi. Esta garantia vagas nos cursos de agronomia e veterinária para os filhos dos fazendeiros, mesmo para aqueles não que não tinham o chamado ensino médio. Não há relatos de revolta na época das cotas para os filhos ricos e brancos dos grandes propriedades de terra, enquanto atualmente se discutem de forma feroz as cotas para negros. Outro exemplo de política afirmativa é a lei eleitoral, que garantiu 30% das candidaturas para as mulheres em cada partido e também não houve forte oposição. Outra ação afirmativa se refere a vagas de concurso público para portadores de necessidades especiais, que foi bem aceito pela sociedade.

As políticas afirmativas que garantam cotas para negros nas universidades não é um direito deles, mas um dever de uma sociedade que os excluiu e os abandonou a própria sorte. O argumento de que as cotas raciais ferem o princípio da igualdade é balela. Como disse o filósofo Aristóteles e reafirmado pelo jurista Rui Barbosa “a verdadeira igualdade consiste em tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”. Como foi demonstrado, devido à situação socioeconômica que foi imposto aos ex-escravos, não se pode falar que os afro-descendentes são iguais aos brancos. Logo, deve tratar os descendentes de escravos de forma desigual para no futuro igualá-los em condições com os descendentes dos senhores de escravo. Como a História do Brasil foi manchada pelo racismo e relegou os pretos a segundo plano não combater a discriminação é que fere o princípio da igualdade. As ações afirmativas é cumpridor do referido princípio constitucional e favorece a democracia, pois “só garantindo a igualdade é que uma sociedade pluralista pode se compreender também como sociedade democrática” (Gallup, 2002)[5].

As cotas raciais não teriam existência eterna. Seria uma solução em curto prazo enquanto fossem feitas as soluções de médio e longo prazo, como a melhoria da escola pública.  É esse o pensamento do membro do Conselho Nacional de Juventude e integrante Unegro Ângela Guimarães[6]:

“Entendemos que a busca pela igualdade pressupõe a combinação de medidas emergenciais com medidas de médio e longo prazos, com vistas à superação do fosso que separa os grupos populacionais no país. Ações afirmativas têm sua duração limitada a suprir a uma demanda emergencial, que não poderá esperar os efeitos das medidas de longo prazo”.

Diante da grande discriminação em que foram vítimas os negros, que provocou uma colossal desigualdade racial, as ações afirmativas, via cotas raciais, são justificáveis. Ressalta-se que quando se fala em desigualdade racial está se referindo no sentido sociológico e político, pois já foi provado pela ciência que biologicamente os seres humanos são todos iguais. Combatendo a desigualdade racial, a ação afirmativa é um modo eficaz para a igualdade por “dar tratamento preferencial, favorável, àquele que historicamente foram marginalizados, de sorte a colocá-los em um nível de competição similar aos daqueles que historicamente se beneficiaram da sua exclusão” (Gomes, 2001)[7].

Um tema “polêmico” diz respeito a como definir quem é negro. Tal “polêmica” nem deveria ser utilizado. Ora, quem tem a pele escura sofre preconceito. Os baixos níveis socioeconômicos é mais grave nos afrodescendentes, como mostrado nos índices acima do IBGE. Esse é o critério defendido pela professora Nilma Lino Gomes[8], pois o racismo fica evidente contra as pessoas de “cor”:

"O principal critério utilizado pelas cotas étnicas será o mesmo que a sociedade brasileira, historicamente, tem usado para discriminar negativamente os negros: a cor da pele. Nas ações afirmativas, esse critério será usado afirmativamente, não para excluir os negros da sociedade, mas para incluí-los. Além disso, existem outros aspectos fenotípicos construídos na sociedade e na cultura que, juntamente com a cor da pele, atestem quem é negro e quem é branco no Brasil. Não vamos fingir que isso não existe. E não vamos apelar para a mistura racial para fugirmos dessa questão!!! E nem apelar para a genética para dizermos que “raça” é um conceito cientificamente inoperante. Todos aqui já sabem disso."

Só uma pessoa mal-intencionada não percebe quem negro (pardo e preto) nessa sociedade. Para discriminar é fácil a definição, mas para incluir a matéria passa a ser polêmica. Qualquer dúvida sobre quem é negro pergunte para a polícia ou segurança de shopping center, pois estes são expert’s na identificação daquele. Talvez o chicote da discriminação seja mais terrível do que o chicote nas mãos de um capataz. As cotas são um duro golpe aos açoites do preconceito.

Como foi colocado na citação acima, utiliza-se a palavra “raça” como uma construção sócio-cultural. E o preconceito no Brasil diz respeito a de marca (cor) e não de origem, como é nos Estados Unidos da América, segundo o sociólogo Oracy Nogueira[9]. Este pesquisador afirma que o preconceito está ligado à aparência, ou seja, pelos traços físicos do individuo, a fisionomia, os gestos e sotaques, enfim, a cor. Esse argumento é um deboche para evitar um resgate de uma dívida social que o Brasil tem com os descendentes dos escravos.   

Com relação à desculpa de que os cotistas não teriam condições de acompanhar os estudantes que entraram da forma convencional na Universidade ou mesmo que iriam fazer a qualidade do ensino superior diminuir, recentes pesquisas comprovam que essas duas situações são falácias. O aproveitamento dos estudantes que entram pelas cotas é até melhor do que os alunos do sistema regular. É o que diz a reportagem publicada pelo jornal Estadão em 17 de julho de 2010. Vejamos dois trechos[10]:

O primeiro levantamento sobre o tema, feito na Uerj em 2003, indicou que 49% dos cotistas foram aprovados em todas as disciplinas no primeiro semestre do ano, contra 47% dos estudantes que ingressaram pelo sistema regular.

No início de2010, auniversidade divulgou novo estudo, que constatou que, desde que foram instituídas as cotas, o índice de reprovações e a taxa de evasão totais permaneceram menores entre os beneficiados por políticas afirmativas.

O ex-ministro da Educação, Fernando Haddad, confirmou no 10º Encontro Nacional de Assuntos Estratégicos, realizado no dia 23 de setembro de 2010, que o desempenho dos cotistas é superior aos dos não cotistas. Observemos um trecho dessa reportagem[11]:

Haddad criticou a tese defendida pelos críticos das cotas, segundo os quais o sistema estimularia o conflito racial. “O conflito não aconteceu, pelo contrário, a diversidade se impôs, e nada melhor que brancos convivendo com negros. Conviver com a diferença é um elemento fundamental da educação. Se você não sabe conviver com a diferença, não está educado”, destacou.

Pelos dados acima, a dúvida sobre a capacidade dos cotistas deixa de existir. Quem entra por esse meio na Universidade se esforça mais. Esses alunos acabam contribuindo para a qualidade da instituição de ensino superior. Além disso, ao contrário do que muitos pensam, as cotas não vão garantir vagas para aqueles que foram reprovados no vestibular. Explicando: um curso tem 20 vagas e os 20 primeiros colocados assumem as vagas. Acontece que há os chamados classificáveis, que conseguiram boa pontuação, mas que ficaram fora das quantidades de vagas. Muitos que ficam nessa situação são de escolas públicas e negros. Por isso não pode haver queda de qualidade, pois quem entra pelas cotas estão aptos para a vaga que pleitearam. Conseguiram pontuação aprovativa, mas não seriam chamados por falta de vagas.

As cotas raciais é a possibilidade de uma reparação de uma injustiça. As cotas não irão beneficiar apenas os negros, mas todo o país. Seria a possibilidade, a curto prazo, de ver os afro-descendentes na elite da nossa nação. Com as cotas, é capacidade do Brasil de se assumir como país multirracial que é, e não ficar imitando estereótipo europeu.  

Com o fim da escravidão e o abandono do poder público em relação aos negros, a imaginação social com relação aos afro-descendentes permaneceu e aumentou. Continuou-se a vê-los como subumanos, que serviam apenas para o trabalho pesado. A miscigenação foi considerada a culpada pelo atraso do Brasil. Expomos trecho do artigo do Dr. Eder Bonfim Rodrigues[12]:

O embranquecimento da população estava amparada em teorias racistas que vigoravam naquele período e que exaltavam os povos da Europa e que subjugavam os negros, índios e orientais como raças inferiores e cheias de influências negativas. O que se buscava com a imigração era mudar a cor da população brasileira e extirpar cada vez mais o negro da sociedade.

Com esse tipo de pensamento o preconceito permaneceu na cultura brasileira. Imagine o efeito de nascer negro e já sendo considerado culpado pela a miséria da nação brasileira. Imagine o forte racismo incrementado pela a idéia cancerígena do embranquecimento do Brasil. A baixa estima dos negros se consolida e é um ponto que deve ser combatida. Assim se posiciona o antropólogo Carlos Eduardo Marques[13]:

"Como fica claro, ao implementar ações afirmativas de caráter étnico-racial, o Brasil estará efetivamente combatendo as desigualdades sociais. Sem, no entanto, deixar de reconhecer que é necessária a aplicação de políticas específicas para os negros e os pardos em razão de alto grau de marginalização e baixa auto-estima".

Em favor do princípio da igualdade veio a Lei nº 7.716/1989, que fala dos crimes de preconceito de raça e cor. Como coloca o sociólogo Aurélio do Nascimento[14] “ser preto não é problema. O problema é ser racista, fato que deve ser penalizado”. E as cotas raciais vêm para combater uma injustiça ao povo negro. Este, neste país, é quem pode exigir igualdade de condições. Bom lembrar que durante séculos foram os escravos que mantiveram este país erguido com seus suores e muito sangue e após a abolição foram deixados de lado pelos poderosos brancos da elite brasileira, que preferiram não ter personalidade e imitar os europeus, começando um processo de embranquecimento da sociedade financiando a vinda de imigrantes do velho continente. Passou da hora do Brasil ter caráter e se assumir como Estado multirracial com muito orgulho.



[1] http://www.sociologiajuridica.net.br/antigo/rev05priscila.htm

[2] http://educacao.uol.com.br/historia-brasil/ult1702u63.jhtm

[3] OLIVEIRA, Persio Santos. Introducao a Sociologia. São Paulo, Editora Ática, 2002.

[4] http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/default.shtm

[5] GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

[6] http://sociologialimite.blogspot.com/2009/11/acoes-afirmativas-por-uma-sociedade.html

[7] GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

[8] GOMES, Nilma Lino. Cotas Étnicas. Manuscrito da palestra proferida pela autora do Seminário: “Ampliação do acesso à Universidade Pública: uma urgência democrática.” Realizado na cidade de Belo Horizonte, no campus da Universidade Federal de Minas Gerais, no período de7 a 9 de maio de 2003.

[9] NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de Marca: as relações raciaisem Itapetinga. São Paulo: Edusp, 1998.

[10] http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100717/not_imp582324,0.php

[11] http://educacao.uol.com.br/ultnot/2010/09/23/cotistas-do-prouni-tem-desempenho-superior-aos-nao-cotistas-diz-haddad.jhtm

[12] http://jus.uol.com.br/revista/texto/7516/igualdade-e-inclusao-social-no-brasil

[13] http://www.africaeafricanidades.com/documentos/10082010_02.pdf

[14] http://racabrasil.uol.com.br/Edicoes/92/artigo12147-3.asp

Assuntos: Cota racial, Direito Administrativo, Direito Constitucional

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