A aplicabilidade da teoria da reserva do possível no ordenamento jurídico brasileiro

30/04/2013. Enviado por

O texto aborda, de forma sucinta, a aplicabilidade da teoria da reserva do possível no ordenamento jurídico pátrio, com ênfase em casos de fornecimento de medicamentos por parte do Estado (um dever de assistência constitucionalmente previsto).

A economia é tratada como um campo autônomo, muito embora tenha advindo da ciência política, ganhando autonomia no campo da filosofia prática. No mesmo passo caminha o direito, o qual possui uma estrada acadêmica muito mais longa que a economia. No entanto, por vezes, ainda que sejam ramos autônomos, economia e direito devem ser apreciados conjuntamente para resolução de um caso concreto, por exemplo, a teoria da reserva do possível, que será objeto do presente artigo.[1]

Voltando-se para o tema ora em apreço, isto é, a teoria da reserva do possível, imperioso se faz trazer à tona um pouco da sua história. A aludida teoria tem seu pilar num julgamento proferido pela Corte Constitucional Alemã, no conhecido caso denominado de numerus clausus, onde a corte analisou uma demanda judicial proposta por estudantes que não haviam sido aceitos em escolas de medicina de Hamburgo e Munique por conta da política de limitação do número de vagas.

Dessa forma, sendo pleiteado pelos referidos estudantes o acesso irrestrito a determinados cursos superiores de maior procura, tudo com base na Lei Fundamental Germânica. Contudo, na oportunidade do julgamento, entendeu a Corte Alemã que o acesso irrestrito de vagas a certos cursos de maior demanda iria afetar diretamente outros serviços públicos, justamente em virtude da grande onerosidade que acarretaria e da escassez de recursos que sofre o estado. Com isto restando estabelecido no julgado que o indivíduo poderia exigir do estado apenas aquilo que estivesse dentro de um limite básico social.[2]

Nas palavras do renomado jurista Dr. Ingo Sarlet, a Corte Alemã entendeu que “(...) a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável”.[3] Portanto, para que o estado possa efetivar um direito não bastam unicamente recursos materiais para tanto, há de se fazer uma análise de razoabilidade da pretensão aduzida.

Entretanto, no Brasil, a interpretação dada à teoria da reserva do possível nos leva a uma teoria da reserva do financeiramente possível, onde existem dois requisitos fundamentais para concessão de uma prestação social, quais sejam, (i.) a suficiência de recursos públicos e (ii.) a previsão orçamentária para a respectiva despesa.[4] Na prática, a jurisprudência vem entendendo que não basta a mera alegação de insuficiência de recursos, deve sim ser efetivamente comprovada a exaustão orçamentária, isto é, a total ausência de recursos.

Nas palavras do Min. Celso de Mello, no julgamento da ADPF n. 45, “(...) É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência”.[5]

Outrossim, nem mesmo a ausência de previsão orçamentária, por vezes, como é o caso de fornecimento de medicamentos, é suficiente para afastar a responsabilidade do estado em efetivar a prestação social, devendo ser ponderado o bem que está em jogo diante da escassez de recursos financeiros do ente estatal, como ocorre com a vida.

Nessa senda, válido colacionar a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

EMENTA: DECISÃO MONOCRÁTICA. APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. CASO CONCRETO. PACIENTES PORTADORS DE ISQUEMIA CEREBRAL CRÔNICA E DEPRESSÃO 1. LEGITIMIDADE PASSIVA RECONHECIDA. Competência solidária dos entes públicos independente da esfera institucional de atuação no plano de organização federativa brasileira. 2. NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS AFASTADAS. Sua observância corresponde ao verdadeiro alcance do conteúdo político das disposições constitucionais, descabendo considerá-las a título de meros programas de atuação. 3. AUSÊNCIA DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA. DESCABIMENTO. Empecilhos dessa natureza não prevalecem frente à ordem constitucionalmente estatuída de priorização da saúde. 4. AFRONTA A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL NÃO VERIFICADA. Em face da Carta Magna é incumbência do Judiciário reparar lesão, ou a ameaça a direito, ou suprir omissão (art. 5°, XXV, CF). APELO DESPROVIDOEM DECISÃO MONOCRÁTICA. (Apelação Cível Nº 70030922322, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sandra Brisolara Medeiros, Julgado em 19/01/2010) (grifou-se)

Todavia, no caso de ser demonstrada a carência orçamentária do estado e não restar comprova a urgência na tutela pretendida, o mesmo Judiciário que ora acolhe o pleito para determinar que o estado arque com uma despesa que não tem previsão orçamentária, irá determinar que não se forneça a prestação requerida.[6] Portanto, para que se possa aferir a utilização (ou não) da teoria da reserva do possível dentro do ordenamento jurídico pátrio, deve ser feita uma subsunção do caso concreto a fim de se verificar a real necessidade de prover a assistência social pleiteada, oportunidade em que ficamos vinculados ao binômio necessidade/possibilidade.

Conclusivamente, a teoria da reserva do possível tal qual é aplicada nos tribunais brasileiros nos leva a uma análise que pode ser definida em dois momentos práticos: no primeiro deles deve ser verificada a suficiência de recursos públicos e a respectiva previsão orçamentária nas contas do estado; já, num segundo momento, passa-se a uma análise sistemática dos ditames da Constituição Federal, onde devem ser ponderados os bens jurídicos em foco através dos princípios da razoabilidade (em relação à reivindicação daquele direito social) e da proporcionalidade (ponderando-se os bens em conflito, no caso o orçamento público e o direito social lesado).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006.

OLIVEIRA, Rafael Sergio Lima de. Reserva do Possível, natureza jurídica e mínimo essencial: paradigmas para uma definição. Disponível em http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/11_369.pdf, acessado em 22/03/2010, às 17h30min.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

Sites consultados:

www.stf.jus.br

www.tjrs.jus.br

[1] LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006. Pág. 266.

[2] OLIVEIRA, Rafael Sergio Lima de. Reserva do Possível, natureza jurídica e mínimo essencial: paradigmas para uma definição. Disponível em http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/11_369.pdf , acessado em 22/03/2010, às 17h30min.

[3] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. Pág. 265.

[4] Ibidem. Pág. 286.

[5] STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04.

[6] EMENTA: APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SAÚDE. INTERNAÇÃO POR DROGADIÇÃO. ECA. PRELIMINARES DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, CARÊNCIA DE AÇÃO E DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, AFASTADAS. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL. PREVALÊNCIA DOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS À VIDA E À SAÚDE. O Ministério Público é parte legítima para figurar no pólo ativo de ações civis públicas que busquem a proteção do direito individual da criança e do adolescente à vida e à saúde. Aplicação dos art. 127, da CF/88; art. 201, V, 208, VII, e 212 do ECA. Em se tratando de pedido de internação compulsória de adolescente para tratamento de drogadição severa, existe solidariedade passiva entre a União, os Estados e os Municípios, cabendo ao necessitado escolher quem deverá lhe fornecer o tratamento pleiteado. O fornecimento de tratamento médico ao menor, cuja família não dispõe de recursos econômicos, independe de previsão orçamentária, tendo em vista que a Constituição Federal, ao assentar, de forma cogente, que os direitos das crianças e adolescentes devem ser tratados com prioridade, afasta a alegação de carência de recursos financeiros como justificativa para a omissão do Poder Público. A administração pública, que prima pelo princípio da publicidade dos atos administrativos, não pode se escudar na alegada discricionariedade para afastar do Poder Judiciário a análise dos fatos que envolvem eventual violação de direitos. A necessidade de obtenção do tratamento pode ser deduzida diretamente ao Judiciário, sem necessidade de solicitação administrativa prévia, na medida em que se postula o fornecimento com urgência, em face do iminente risco à saúde. Aplica-se o ¿Princípio da Reserva do Possível¿ quando demonstrada a carência orçamentária do Poder Público e o atendimento solicitado (medicamento ou exame médico), não se enquadra entre os casos de extrema necessidade e urgência. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70026109132, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 25/09/2008) (grifou-se)

Assuntos: Direito Constitucional, Direito processual civil

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