O DIREITO PENAL DO INIMIGO E SEUS RESQUÍCIOS NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA

01/02/2019. Enviado por

Imprescindível se faz todo zelo e cuidado com a ordem constitucional para que esta não seja maculada a ponto de já não fazer jus ao estado a que fora constituída. Ora, a República Federativa do Brasil é estabelecida sob um estado de Direito.

O presente artigo científico tem como objetivo principal sugerir uma reflexão sobre possíveis resquícios de direito penal do inimigo no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista o atual modelo de Estado brasileiro, a saber: Estado Democrático de Direito, mais especificamente em relação ao Direito Penal Carcerário.

Em meio ao clamor popular por mais segurança, o Estado tem tentado dar uma resposta, ainda que ineficiente, por intermédio, principalmente da criação de leis, criminalizando determinadas condutas, ou mesmo enrijecendo suas punições.

Neste viés, deve-se acentuar que esta criação de normas não pode se dar de forma desenfreada e sem qualquer pudor, uma vez que o legislador precisa observar os limites do modelo de Estado que os cercam, sendo que qualquer norma que venha contrariar a Constituição Federal deve ser identificada e atacada a fim de ser abolida do ordenamento.

Tal pretensão é que motivou a elaboração da presente pesquisa. Muito embora esteja delimitada a análise de apenas um dispositivo legal, a saber: o artigo 52, da Lei 7.210/84 (Lei de Execuções Penais) que institui o Regime Disciplinar Diferenciado, a reflexão se faz imprescindível.

O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) nada mais é do que um regime de disciplina carcerária especial, que, nos termos do artigo supracitado, dispõe que o apenado que incidir no cometimento de alguma falta grave será submetido a um tratamento carcerário com maior grau de isolamento e a maiores restrições de medida cautelar.

Ocorre que os termos estabelecidos pela lei se revelam, de forma explícita, como um direito penal diferenciado, capaz de punir o “risco” ou até mesmo a mera “suspeita” de que o indivíduo esteja envolvido com determinada situação delituosa, caso que traz à baila a teoria do jus filósofo Günther Jakobs, a saber: o Direito Penal do Inimigo (JACOBS e MELIÁ, 2007).  

Desta forma, torna-se relevante discutir acerca do tema para demonstrar a incidência do Direito Penal do Inimigo na legislação penal brasileira, para que, uma vez identificados tais resquícios, estes sejam devidamente eliminados, em obediência à ordem democrática de direito de nosso Estado. E, por despretensioso que é o presente artigo cientifico, lança-se mão de um pensamento de Madre Tereza de Calcutá, “Sei que meu trabalho é uma gota no oceano, mas sem ela, o oceano seria menor”.

Mister se faz analisar as bases e as repercussões do Direito Penal do Inimigo para que se possa compreender como essa teoria se qualifica e a sua aplicabilidade no caso concreto, uma vez que fora elaborada objetivando combater o cenário de terrorismo vivido pela Europa na década de 80 (JACOBS e MELIÁ, 2007). Na verdade, o Direito Penal do Inimigo “cria” um novo indivíduo no contexto da criminalidade caracterizando-o como inimigo, retirando sua cidadania e dignidade, como forma de punição ou “consequência” pelo fato de ter descumprido e não se sujeitado ao contrato social previamente estabelecido.

Visa-se estudar os requisitos para sua aplicação bem como a incidência do Regime Disciplinar Diferenciado, qual sua importância tendo em vista a realidade do sistema penitenciário brasileiro, e, mesmo, sua eficácia. Ora, a prisão de um indivíduo, seja de caráter cautelar, provisório ou definitivo, por si só não impede o cometimento de delitos dentro do cárcere, sendo comum a prática de crimes e transgressões disciplinares dentro dos presídios.

Neste diapasão, o Regime Disciplinar Diferenciado vislumbra uma possibilidade de não deixar impune quaisquer cometimentos de delitos ou incidências em descumprimentos de normas disciplinares carcerárias, a fim de se buscar restabelecer a ordem nos presídios brasileiros.

Nesta esteira, busca-se avaliar se a incidência do Direito Penal do Inimigo é compatível com a ordem constitucional brasileira vigente, se há observância da norma pátria ou apresenta-se como contradição à Lei maior, ferindo os ditames constitucionais mais básicos.

Assim, uma vez demonstrada tal incompatibilidade entre Direito Penal do Inimigo e Ordem constitucional vigente, pretende-se concluir se há resquícios da presente teoria de Günther Jacobs no Regime Disciplinar Diferenciado, previsto no artigo 52 da Lei 7.210/84 (Lei de Execuções Penais).

 

 

2 REFERENCIAL TEÓRICO/DESENVOLVIMENTO

 

2.1 FUNÇÃO DO DIREITO PENAL

 

2.1.1 Proteção de Bens Jurídicos

 

Para que se possa compreender com maior clareza a proposta do presente artigo, faz-se relevante analisar a função do Direito Penal dentro de um Estado Democrático de Direito. Assim, trata-se de um Direito que busca a proteção de bens jurídicos fundamentais, como pressuposto material mínimo de sua tutela, termos em que leciona Alice Bianchini (2002, p. 114) “O direito penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens (princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos), o que concede ao direito penal um caráter fragmentário”.

Nesta esteira, tem-se a compreensão de que qualquer norma em desacordo ao que a Constituição Federal determina ao Direito Penal, fazendo-o desvirtuar sua tutela, não deve prevalecer, como aponta Luiz Régis Prado (1997, p. 143) ao dizer que deve “ser rechaçada a ação legislativa que outorgue proteção a bens que não sejam constitucionalmente direta ou indiretamente amparados”. Mesmo porque não pode ser legitimada uma ação penal sem que se baseie na proteção de um bem jurídico, “uma ameaça penal contra um comportamento humano é ilegítima, sempre que não possa lastrear-se na proteção de um bem jurídico”. (HASSEMER, 1994, p.52).

Passa-se agora a tratar de características do Direito Penal, segundo a ordem constitucional vigente no ordenamento jurídico pátrio.

 

2.1.2 Do Princípio da Insignificância

 

O princípio da insignificância é um importante instrumento constitucional que impõe ao juiz a verificação da constitucionalidade do delito positivado, bem como a análise se determinada conduta, mesmo que esteja tipificada, ofende bem jurídico tutelado (LIMA, 2012). Logo, verifica-se uma discricionariedade confiada ao julgador a fim de que a aplicação do Direito Penal se dê apenas em situações de relevantes ataques ao bem jurídico tutelado.

Se assim não fosse, a mera conduta diante do fato típico poderia ser capaz de fazer incidir a pena sobre o agente autor da conduta tipificada, mas não é o que ensina Alberto Jorge Correa de Barros Lima, ao afirmar, categoricamente, que:

 

A tipicidade, um dos núcleos integrantes do fato típico (o outro é a conduta), não se esgota na relação de adequação da conduta humana ao tipo penal (tipicidade formal), mas exige, em cada caso, uma concreção da ofensa ao bem jurídico tutelado (tipicidade material). Inexistindo ofensa ao bem jurídico, ou mesmo sendo tal ofensa insignificante, por mais clara que seja a adequação entre a conduta e o tipo, não se pode falar mais em tipicidade e, portanto, em crime (ZAFFARONI apud LIMA et al, 2012, p.83).

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Ora, assim sendo, o agente que comete determinada conduta, ainda que positivada, pode não estar cometendo um crime, necessariamente, se a ofensa gerada for demasiadamente insignificante.

 

2.1.3 Teoria Finalista da Ação – Conduta

 

Formulada na década de 1930, pelo Alemão Hans Welzel, a Teoria Finalista da Ação identifica o crime como atividade humana (BRAMBILLA, 2009), ou seja, está relativa a apontar crime tão somente na conduta do indivíduo.

Neste viés, Miguel Reale Junior (2012) vai além, ao dizer que a ação humana é, por natureza, finalista, onde sua própria estrutura comporta a intenção, e que a causalidade é exigência do real, além do caráter finalístico da ação.

Neste diapasão, verifica-se que somente a conduta do agente, de acordo com a referida teoria, pode dar ensejo a uma atuação do Estado pelas vias penais, de modo a punir um ação imperativa daquele que violou o tipo penal, seja dotado de dolo, seja dotado de culpa.

A Teoria Finalista da Ação, adotada pelo código penal Brasileiro, exige que haja dolo ou culpa na conduta praticada pelo agente, para que esta seja enquadrada no tipo penal, caso que, na falta de algum destes elementos, não há o que se falar em tipicidade da conduta (EMANUELE, 2007). De forma simplificada, esclarece Rodrigo Santos Emanuele, nos seguintes termos:

 

A referida teoria adotada leva em conta o valor da ação, o motivo pelo qual levou alguém a praticar o delito, ao contrário da teoria causal que se contenta em apenas ver a relação de causa e efeito da conduta. A teoria finalista se preocupa com o conteúdo da conduta e da norma, pois muitos tipos penais no seu próprio corpo descrevem elementos que exigem uma finalidade específica, portanto, não poderíamos ignorar essa vontade da lei (EMANUELE, 2007).

 

 Logo, ao vislumbrar a Teoria Finalista da Ação, que é a teoria adotada pelo ordenamento jurídico Brasileiro, não há o que se falar em qualquer forma de punição ou atuação penal que não se baseie na conduta do indivíduo, uma vez que o Direito Penal deve ser imposto unicamente a ações efetivas do indivíduo, devendo ser refutada qualquer teoria que não venha punir unicamente  condutas, que afronte a intimidade e a liberdade de personalidade do indivíduo.

Nesta esteira, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, inciso, IV, garante a liberdade de pensamento de todo cidadão. Sendo assim, não é concebível uma punição a quem quer que seja, pelos seus pensamentos ou personalidade, não se configurando crime os “pensamentos delituosos”, ou até mesmo, mentes psicopatas, desde que tais anseios não venham a se materializarem (Constituição Federal, 1988).

Passa-se agora a tratar da teoria de Direito Penal do Inimigo, com o objetivo de estudar se seus elementos se compatibilizam com as características até agora discutidas.

 

 

2.2 DIRETTO PENAL DO INIMIGO – GÜNTHER JACOBS

 

Levando em consideração as políticas públicas que combatem a criminalidade, o doutrinador alemão, Gunther Jacobs (2007), pensou num “direito penal diferenciado” a ser aplicado a um cometedor de delitos com “alto grau de periculosidade”.

Para o referido doutrinador, a pena seria dotada de uma dupla função, a saber: confirmar, numa sociedade, a existência de um contrato social previamente estabelecido por determinados indivíduos que, ao receberem o status de cidadão, automaticamente estariam assinando este contrato, com todas as suas “obrigações”, bem como se comprometendo, compulsoriamente, a se submeterem às regras próprias dessa sociedade e como forma de intimidar o cometimento de delitos (JACOBS e MELIÁ, 2007).

Neste viés, são inimigos aqueles cometedores de infrações graves, como, por exemplo, crimes sexuais, terrorismo, dentre outros, bem como os que insistem em delinquir, os chamados reincidentes (JACOBS e MELIÁ, 2007).

Luiz Flávio Gomes, Antônio Garcia, Pablos de Molina e Alice Bianchini (2007, p. 295) lecionam que “Em poucas palavras, é inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma”.

Ocorre que, se o cidadão que se tornou um contratante pelo simples fato de fazer parte de determinada sociedade, pouco importando sua manifestação de vontade, vier a “violar” este contrato, cometendo atos por ele proibidos, estaria, automaticamente, desconstituído de seus status de cidadão, perdendo, portanto, todo e qualquer direito ou garantia que antes lhe era assegurado (JACOBS e MELIÁ, 2007).

Nessa linha de pensamento, de acordo com Kant (1907, apud Jacobs e Meliá, 2007), não se deve tratar como pessoa alguém que “me ameace constantemente” quem não se deixa entrar no Estado-Cidadão, do mesmo modo Hobbes (1984, apud Jacobs e Meliá, 2007) despersonaliza o réu de alta periculosidade, pois este também se nega a obedecer à constituição existente.

Nesta esteira, Luiz Regis Prado ensina que:

 

O direito Penal do Inimigo (inimigo= “o irreconciliável oposto”), de seu turno, tem por destinatários certos indivíduos considerados como fontes de perigo e que, por isso mesmo, são parcialmente despersonalizados pelo direito, com vistas a combater determinada forma de delinquência [grifos do autor] (2012, p. 133).

 

Ora, se a finalidade primordial da pena é, justamente, a reafirmação da vigência da norma, em contrapartida o direito penal do inimigo tem como traço marcante a objeção aos postulados do Direito Penal Liberal e garantista que compõem o Estado Democrático de Direito, a saber: a) a possibilidade de punição a meros atos preparatórios, ou mesmo exercer uma punibilidade preventiva de delitos futuros; b) sendo que a referida punição supracitada, não leva em consideração o fato do ilícito não ter sido consumado, não havendo qualquer tipo de atenuação de pena; c) o fato de diversas leis alemãs terem sido elaboradas com o objetivo de combate ao terror, como constatou Jacobs, “leis de luta ou de combate”; d) a possibilidade de serem afetados os direitos e garantias individuais de um “suspeito” dentro de um procedimento penal (PRADO, 2012).

Deste modo, passa-se a visualizar o indivíduo que comete delito como alguém que, por meio de seus atos voluntários, lança fora, a próprio punho, a sua personificação, senão vejamos:

 

A condição de inimigo implica sua desconsideração como pessoa. Nesse sentido, afirma-se que o indivíduo que não aceita submeter-se ao ordenamento jurídico, rechaça sua legitimidade e, assim, persegue sua destruição, não pode ser considerado pelo Estado como pessoa, sendo privado dos benefícios e garantias que esta última condição supõe (PRADO, 2012, p. 133).

 

Muitos são os doutrinadores que repudiam a possibilidade de aplicação de um direito penal “diferenciado” dentre eles, Manuel Cancio Meliá, que não se coaduna com a referida teoria de Jacobs. Este vislumbra que:

 

A essência deste conceito de Direito Penal do Inimigo está, então, em que constitui uma reação de combate, do ordenamento jurídico, contra indivíduos especialmente perigosos, que nada significam, já que de modo paralelo às medidas de segurança, supõe tão-só um processamento desapaixonado, instrumental, de determinadas fontes de perigo, especialmente significativas. Com este instrumento, o Estado não fala com seus cidadãos, mas ameaça seus inimigos (JACOBS e MELIÁ, 2007, p. 71).

 

Verifica-se, portanto, que o Direito Penal do Inimigo vem estabelecer uma nova condição ao indivíduo que tenha extrapolado os limites da lei, condição essa que o priva de sua cidadania, reduzindo-o a inimigo que deve ser combatido e exterminado.

Nesta esteira, refuta-se a tese de Direito Penal do Inimigo, visto que a ordem jurídica vigente compreende aplicação do direito penal do fato, em que o indivíduo sofre as sanções pelo que cometeu; diferente da tese de Direito Penal do Inimigo, que se realiza em punir o indivíduo por aquilo que ele é ou aquilo que ele representa, ou seja, um direito penal do autor (GOMES; GARCÍA; MOLINA E BIANCHINI, 2007).

 

2.3 DA SOCIEDADE DE RÍSCO

 

A teoria de Direito Penal do Inimigo traz em voga, como importante elemento a corroborar com a plausibilidade da teoria de JACOBS, a sociedade de risco, que traz como principal característica a impossibilidade de prever as situações de perigo, tendo em vista estar diante de uma sociedade cujos riscos de danos sejam imprevisíveis e iminentes (BECK, 2002).

Nesta esteira, Sánchez ensina que:

 

A sociedade pós-industrial é, além da “sociedade de risco” tecnológico, uma sociedade com outras características inidividualizadoras que contribuem à sua caracterização como uma sociedade  de “objetiva” insegurança. Desde logo, deve ficar claro que o emprego de meios técnicos, a comercialização de produtos ou a utilização de substâncias cujos possíveis efeitos nocivos são ainda desconhecidos e, em última análise, manifestar-se-ão anos depois da realização da conduta, introduzem um importante fator de incerteza na vida social (SÁNCHEZ, 2011, p. 37).

 

Na obra intitulada de “Sociedade do Risco”, o alemão Ulrich Beck (1992), ao fazer uma análise da sociedade, no que diz respeito à criminalidade ao longo da história, identifica que o risco sempre esteve presente no relacionamento interpessoal humano. Ocorre que tais riscos são dotados de uma variável que os identificam com maiores ou menores graus de intensidade.

Assim, verifica-se que a citada teoria do sociólogo Ulrich Beck clama por um enrijecimento do direito penal, levando em conta a variável do risco, quando elevado a um grau de periculosidade mais danoso (1992). Isto, teoricamente, daria vazão à aplicabilidade da, já discutida, teoria do Direito Penal do Inimigo, ocorre que o que se leva em conta na “teoria do risco”, é, unicamente o “risco” e não a eficácia do enrijecimento do Direito Penal, onde o mero risco presume a necessidade de um Direito Penal diferenciado, seja ele eficaz ou não.

É o que podemos verificar ao se analisar a Lei 8.072/90, Lei de Crimes Hediondos, que entrou em vigor em 1990 com o objetivo de enrijecer diversos tipos penais, a fim de inibir seus cometimentos.

Ocorre que, de acordo com pesquisa realizada, a pedido do Ministério da Justiça, pelo Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD), coordenada por Isabel Figueiredo, nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, entre os anos de 1984 e 2003, concluiu-se que, de fato a referida Lei é ineficaz (2005). Nota-se que, embora seja necessária a aplicação de políticas públicas a fim de combater a criminalidade, o mero enrijecimento do Direito Penal acaba por não atingir o objetivo esperado.

Tratar-se-á, agora, da incompatibilidade jurídico-constitucional, da teoria do Direito Penal do Inimigo com a Constituição da República Federativa do Brasil.

 

2.3 DA INCOMPATIBILIDADE DO DIREITO PENAL DO INIMIGO COM A ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE

 

A priori, destaque-se que toda sociedade estabelece normas que são compreendidas como princípios fundamentais, os quais devem ser observados por todos os ramos do direito. Com o direito penal não poderia ser diferente; eis o ramo do direito que mais deve se aproximar dos ditames fundamentais emanados da Constituição Federal, visto que sua função primordial interfere diretamente no direito à liberdade dos indivíduos.

Ora, quando qualquer indivíduo, penalmente capaz, viola as regras de conduta da sociedade impostas por Lei, o Estado, legitimo que é, assume a função de reestabelecer a ordem jurídica impondo penalidades ao criminoso. Essa atuação estatal se dá pelas vias do direito penal e direito processual penal, fato que nos chama a atenção para que estas normas, como ensina Alberto Jorge Correa de Barros Lima (2012), Só há legitimidade a aplicação do Direito Penal, quando este se pauta integralmente no Princípio Constitucional da Dignidade Humana, que é justamente o que delimitará o chamado jus puniendi estatal, bem como fundamentar as possibilidades de criminalização e a necessidade da pena.

Necessário, porém, é dar uma definição ao termo “dignidade humana”, o que o faz categoricamente Alberto Jorge Correa de Barros Lima, quando ensina que:

 

Dignidade humana não é outra coisa senão uma categoria moral, que, antes de mais nada, relaciona-se, como quer Rabenhorst, “com a própria representação que fazemos da condição humana”, por outras palavras, dignidade “é a qualidade particular que atribuímos aos seres humanos em função da posição que eles ocupam na escala dos seres” (RABENHORST apud LIMA et al, 2012, p.28).

 

Nota-se que dignidade humana é mais do que um termo para abrilhantar um ordenamento, mas traz consigo grande profundidade quanto a seu significado.

Nesta esteira, o ordenamento jurídico brasileiro, na Constituição Federal de 1988, elevou o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana a sua máxima importância. Os doutrinadores constitucionalistas Bodo Pieroth e Bernhard Schlink lecionam que:

 

De modo diferente do que sucede com a maioria dos direitos fundamentais, a estatuição da garantia da dignidade da pessoa humana encontra-se formulada numa frase própria: o art. 1º, n. 1, frase 2, obriga todas as autoridades públicas a respeitar e proteger a dignidade da pessoa humana. Enquanto o conceito de “respeitar” significa que não pode haver ingerência na dignidade da pessoa humana, o conceito de “proteger” vai para além disso. Este é um dos poucos pontos da lista dos direitos fundamentais da Lei Fundamental em que se impõe aos poderes públicos um dever de proteção (PIEROTH e SCHLINK, 2012, p. 132).

 

Assim, qualquer que seja a norma que desrespeite o princípio da dignidade da pessoa humana, para nada mais serve senão para enfraquecer os pilares das garantias fundamentais protegidas pelo ordenamento jurídico. Quando desrespeitamos a dignidade da pessoa, seja ela quem for, coisificamos o ser humano, e, de certa forma apequenamos toda a sociedade.

Deste modo, por óbvio, torna-se incompatível qualquer legislação que venha, seja qual for sua motivação, despir o indivíduo de sua dignidade.

Nesta esteira, o Direito Penal do Inimigo fere o ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, identificada a dupla função das normas constitucionais, torna-se inimaginável tal compatibilidade, visto que a concepção de inimigo afasta do indivíduo a garantia que este possui, ou seja, de ser protegido dos excessos do Estado (JACOBS e MELIÁ, 2007).

 

2.4 O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO E SEUS RESQUÍCIOS DE DIREITO PENAL DO INIMIGO

2.4.1 O Advento do Regime Disciplinar Diferenciado

 

No sistema penal brasileiro, uma vez condenado, o indivíduo iniciará o cumprimento de sua pena em três alternativos regimes de encarceramento, a saber: o regime inicial aberto, semiaberto ou fechado, conforme dispõe o artigo 33, do Código Penal.

Muito embora a aplicação de tais regimes leve em conta a espécie do crime praticado, bem como o quantum de pena estipulado na sentença, há a possibilidade de o apenado galgar pelos regimes durante o cumprimento de sua condenação, caso em que se levará em conta o tempo de pena cumprido (o que ensejará um regime mais benéfico) e o comportamento do preso em seu cárcere (o que poderá lhe impor um regime mais gravoso) (Lei de Execuções Penais).

Neste viés, é oportuno o questionamento: e quando o condenado a cumprir pena no regime inicial mais gravoso (fechado) incidir no cometimento de alguma falta grave? Como fazer para puni-lo sem deixá-lo impune ante sua má conduta carcerária, independentemente de eventual futura pena pelo crime cometido?

Num primeiro momento, quem tratou do tema foi o Pode Executivo do Estado de São Paulo, o qual, após a ocorrência de diversas rebeliões em seus presídios, editou a Resolução SAP-26, de 04 de maio de 2001, instituindo o Regime Disciplinar Diferenciado, com o objetivo de reestabelecer a ordem carcerária (SILVA, 2009).

Contudo, verificou-se a necessidade de haver algum meio que pudesse enrijecer o sistema prisional, no âmbito nacional, sendo assim, em 2003, entra em vigor a Lei nº 10.792, alterando a Lei 7.210/84, Lei de Execuções Penais, instituindo o Regime Disciplinar Diferenciado (SILVA, 2009).

 

2.4.2 Breve Esboço Acerca do Regime Disciplinar Diferenciado

 

Ao apenado, seja provisório ou condenado, cometedor de falta grave, lhe será imposto um regime disciplinar carcerário mais gravoso, como forma de inibir suas más condutas carcerárias, a saber, o Regime Disciplinar Diferenciado (SILVA, 2009).

Nesta esteira, Fernanda Cintra Lauriano Silva ensina que:

 

O Regime Disciplinar Diferenciado é uma sanção disciplinar que se aplica a presos provisórios e condenados e é fixado no caso de prática de fato previsto como crime doloso quando ocasione subversão da ordem ou disciplina interna, observando-se as características previstas em Lei (SILVA, 2009).

 

Insta salientar que o Regime Disciplinar Diferenciado encontra-se regulado pelo artigo 52, da Lei de Execuções Penais, onde há um esboço de suas características, quais sejam:

a) O tempo de duração da punição, regulado pelo inciso I do dispositivo, ao qual se impõe duas bases de parâmetros máximos, a saber, de no máximo trezentos e sessenta dias, não podendo ultrapassar um sexto da pena aplicada. Tal punição pode ser repetida, quantas vezes o apenado ou preso provisório cometer falta grave;

b) O preso será retirado do convívio dos demais carcerários, sendo submetido a um cárcere individual, donde sairá da cela duas horas por dia para banho de sol, termos dos incisos II e IV do artigo 52 da Lei de Execuções Penais. Nota-se que se trata de um tratamento desumano e pena cruel, taxativamente vedado pela Constituição Federal, que dispõe em seu artigo 5º, inciso III, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (Constituição Federal, 1988).

c) No que tange ao recebimento de visitas, o inciso III do dispositivo em tela restringe ao limite de duas pessoas, por semana, por tempo não superior a duas horas (GOMES; GARCÍA; MOLINA E BIANCHINI, 2007).

As incidências do Regime Disciplinar Diferenciado revelam-se, num primeiro momento, como inofensivas normas carcerárias internas que visam manter a ordem e a tranquilidade num ambiente prisional; todavia, o que chama a atenção são as possibilidades de aplicação do RDD apresentadas pelos parágrafos 1º e 2º do mencionado artigo, ao que fazem suas constatações Luiz Flávio Gomes, Antônio Garcia, Alice Bianchini e Pablos de Molina:

 

Nos §§ 1º e 2º (tratamento diferenciado ao preso que apresente alto risco para a segurança ou quando revele fundadas suspeitas de envolvimento com o crime organizado) não há como deixar de divisar exemplos de direito penal do inimigo: pune-se o preso pelo que “é” (ou pelo que se pensa que ele “é”), não pelo que ele fez (CARVALHO apud GOMES et al, 2007, p.297).

 

Nota-se que é inconcebível a punição ao “risco”, uma vez que o ordenamento jurídico pátrio pune crimes taxativos, positivados na legislação, conforme dispõe o artigo 1º do Código Penal, ao esclarecer que; “Não há crime sem Lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação Legal” (Código Penal, 1940). Ainda, não deve prosperar disposição que venha punir a pessoa pelo que ela é, mas cabe ao direito penal punir condutas (GOMES; GARCÍA; MOLINA E BIANCHINI, 2007), como já discutido anteriormente.

Neste diapasão, necessário é analisar o Regime Disciplinar Diferenciado por meio de uma macro visão constitucional, sendo assim, torna-se totalmente incompatível a ideia de punição de um indivíduo fundada em suposições. Ora, num Estado Democrático de Direito prima-se pela presunção de inocência, não havendo o que se falar em prévia punição a meras suspeitas, ainda que fundadas (GOMES; GARCÍA; MOLINA E BIANCHINI, 2007), como já discutido anteriormente.

Assim, constata-se na Lei de Execuções Penais um conflito, de acordo com a opinião dos referidos doutrinadores, qual seja: de um lado à ordem constitucional vigente, e de outro, um dispositivo que traz um tratamento diferenciado, instituído pelo Regime Disciplinar Diferenciado, ao encarcerado, seja ele provisório ou não, dando-nos a ideia de um resquício de Direito Penal do Inimigo.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ao fazermos uma análise acerca da incidência ou não do Direito Penal do Inimigo na legislação que pune, de forma diferenciada, apenado, autor de falta grave, sob a ótica constitucional brasileira, é preciso, antes de qualquer coisa, comparar as características da referida “punição” em face da teoria jus filosófica do Direito Penal do Inimigo.

De maneira superficial, o direito penal do inimigo, basicamente, trata que o indivíduo, ao violar o “contrato social” anteriormente estabelecido, pelo cometimento de algum ilícito, torna-se um inimigo, perdendo seu status de cidadão, sendo-lhe vedadas diversas benesses das quais fazem jus os cidadãos.

Dentre as hipóteses de tratamento desigual entre “inimigo” e “cidadão”, destaca-se o fato de o inimigo poder ser punido pelo “risco” que oferece aos demais indivíduos, ou pela mera “suspeita” de que venha praticar alguma conduta desregrada nos termos da lei. 

Agora, valendo-se da lente da teoria de Jakobs, e, ao direcionarmos o foco ao artigo 52, da lei 7.210/84 (lei de execuções penais), encontramos, em seus parágrafos primeiro e segundo, os termos, “risco” e “fundadas suspeitas” para justificar a punição com tratamento diferenciado para o autor de falta grave, restando configurado, portanto, a real incidência do Direito Penal do Inimigo em nosso regramento penal.

Insta salientar que a relevância da presente abordagem se dá pelo fato de que uma vez permitida a infiltração no ordenamento jurídico pátrio de qualquer normativa que o seja incompatível, como é o caso do Regime Disciplinar Diferenciado, ora atacado, abre-se precedente para que outras normas do mesmo cunho, inclusive com maior gravidade ao Estado Democrático de Direito, venham a surgir, tendo em vista o respaldo recebido.

A preocupação acentua-se quando verificamos normas que tiveram como precedente o próprio RDD manifestarem-se no ordenamento jurídico, mesmo afrontando diretamente a Constituição Federal, como é o caso da Lei, sancionada recentemente em 16 de março de 2016, Lei 13.260/16, (Lei Antiterrorismo), que detém diversos dispositivos os quais evidenciam a teoria de Direito Penal do Inimigo, piamente atacada no presente trabalho, como, por exemplo, a possibilidade de punir atos preparatórios, nos termos do artigo 5º da Lei: “Art. 5o  Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito” (Lei 13.260/16, 2016), ou até mesmo a mera “ameaça”, nas disposições do artigo 2º, parágrafo 2º, inciso I:

Art. 2o  O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

§ 1o  São atos de terrorismo:

I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa; (Lei 13.260/16, 2016).

 Neste diapasão, os dispositivos atacados não poderão prevalecer sem causar sérios danos à ordem constitucional vigente, ou ferir o Estado Democrático de Direito, normas de garantias fundamentais. Outrossim, devem tais dispositivos, uma vez identificados como danosos à proposta de um Estado Democrático de Direito, serem expurgados a fim de se restabelecer a ordem constitucional em todos os seus ramos, em quaisquer que sejam as normas, sobretudo as que tutelam os bens jurídicos mais relevantes, como é o caso do Direito Penal.

Por outro lado, não há dúvidas de que tais medidas, ora atacadas pelo presente trabalho, devem ser reconhecidas como tentativas válidas do legislador, ainda que ingênuas, de salvaguardar o importante bem jurídico que é a segurança pública, posto que medidas devam sim ser tomadas pelo Estado para a proteção da coletividade. Porém, o que se verifica historicamente é que enrijecer o Direito Penal em nada inibe o cometimento de crimes, como é caso da Lei 8.072/90, Lei dos Crimes Hediondos, que desde 1990 elevou diversos crimes ao status de hediondo, e ainda com alteração (enrijecimento) da referida Lei, no que diz respeito ao cumprimento da pena, em 28 de março de 2007, pela Lei 11.464/07, não colaborou em nada para a diminuição da criminalidade, pelo contrário, os índices continuam aumentando.

Assim, resta salientar que o Direito Penal não é o meio mais eficaz para o combate da criminalidade, nem de manutenção de ordem carcerária, mas sim o desenvolvimento de políticas públicas que visem, principalmente, a prevenção do crime, sendo que, quanto melhor estruturado estiver o Estado, menos haverá necessidade de se lançar mão do Direito punitivo, como já dizia o velho ditado popular: “Melhor prevenir do que remediar”.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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Assuntos: Direito Penal

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