Regularização fundiária: minha terra minha vida

19/08/2014. Enviado por

A situação diferente adotada no Distrito Federal para ocupação das áreas públicas não é nenhuma novidade.

Desde o descobrimento do Brasil tal política de ocupação é utilizada, quando se adotou o sistema de sesmarias para povoação das áreas rurais com o objetivo de produção de alimentos; com objetivo de suprir as necessidades dos povoados e manter as atividades rurais.

Para quem desconhece a Lei das Sesmarias cabe esclarecer que foi uma legislação do reinado de Fernando I de Portugal. Foi promulgada em Santarém em 28 de maio de 1375, num momento de crise econômica que se perpetuava na Europa há algumas décadas, agravada pela disseminação da peste negra. O fato desencadeou uma fuga em massa da população para as cidades, ocasionando o abandono de áreas rurais e a escassez de mão de obra, levando a diminuição da produção agrícola.

A lei de Sesmarias pretendia fixar os produtores rurais as terras. Vejam que não se tratou de doação como foi o caso das capitanias hereditárias.

O sistema sesmarial perdurou no Brasil até 17 de julho de 1822, quando a Resolução 76 atribuída a José Bonifácio de Andrade e Silva, pôs termo a esse regime de apropriação de terras. A partir daí a posse passou a proliferar livremente no país, estendendo-se tal situação até a promulgação da Lei de Terras, que reconheceu as sesmarias antigas, ratificou formalmente o regime das posses e instituiu a compra como a única forma de obtenção de terras.

No Distrito Federal não é diferente quanto à primeira parte da instituição de sesmarias, senão vejamos:

A escolha do Planalto Central para a fixação da nova Capital teve como fundamento primordial proporcionar o desenvolvimento do interior do Brasil. Contudo, a região escolhida era inóspita, além de totalmente improdutiva diante da ausência de tecnologias desenvolvidas para a região, induzindo a crença de que o cerrado brasileiro era composto de terras totalmente inférteis.

Desta feita, retornando às experiências anteriores, como a de Portugal, o Governo de Juscelino Kubitschek adotou uma política de povoação semelhante àquela das sesmarias buscando noutros entes da federação, que já estavam num estágio avançado de produção, empresários rurais com coragem suficiente para enfrentar as dificuldades encontradas naquele solo do planalto central, considerado infértil, e o tornar habitável e produtivo.

Assim iniciou-se a distribuição de áreas públicas rurais dentro do polígono do novo Distrito Federal, por meio de contratos de arrendamento oferecidos aos desbravadores rurais, que enfrentaram um ambiente hostil e totalmente desfavorável ao cultivo e produção de alimentos de qualquer espécie.

Hoje, graças à perseverança destes empresários rurais, o Distrito Federal, além de fomentar sua população com a produção agrícola local, é ainda um grande exportador de alimentos, e também serve como porta de entrada para fronteiras agrícolas como a do Mato Grosso, considerado hoje um grande celeiro mundial na produção de grãos.

No entanto, diferentemente da solução dada para o sistema das sesmarias quando extinta - por meio da Resolução 76 – que com a (por meio da) instituição da Lei de Terras reconheceu as sesmarias antigas, ratificou formalmente o regime das posses e instituiu a compra como a única forma de obtenção de terras, o Governo do Distrito Federal entende por bem continuar com a insegurança jurídica gerada frente à ausência de política efetiva que permita a venda direta dos imóveis rurais do Distrito Federal.

Vejamos um breve histórico dos últimos acontecimentos relacionados à questão fundiária no Distrito Federal:

Os produtores rurais que aqui chegaram a convite do então presidente da República Juscelino Kubitschek, com supedâneo em contrato de concessão de uso ou contrato de arrendamento de áreas públicas rurais, com a implícita promessa de futuramente adquirir-lhe a propriedade, no ano de 2001 foram agraciados com a promulgação de Lei Distrital nº 2.689, que possibilita a venda direta destes imóveis aos seus ocupantes.

No entanto, a constitucionalidade da referida lei foi questionada pelo próprio Partido dos Trabalhadores - PT, esse mesmo partido que anunciam fervorosamente primar pelo uso adequado dos imóveis rurais com a fixação dos produtores rurais nas suas propriedades. A discussão iniciada pelo PT prolongou-se até outubro de 2013, quando então a ação foi julgada procedente em parte, apenas para declarar inconstitucional o disposto no artigo 14 da referida lei, mantendo intocável a possibilidade de venda direta aos ocupantes da área rural.

Importante esclarecer que, durante o tempo que tramitou a referida ação de inconstitucionalidade, outros mecanismos foram adotados para fragilizar a situação dos produtores rurais portadores dos contratos de arrendamento, dentre eles a decisão nº. 6779/2007, proferida pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal no processo nº. 1.876/98, que tinha como objeto aferir a regularidade dos arrendamentos rurais existentes no Distrito Federal.

A referida decisão, dentre outras, determinou à Secretaria de Agricultura que adotasse medidas para cumprimento da Lei de Licitações, com fundamento de que os contratos de arrendamento e transferência de arrendamento, firmados após a edição dos Decretos 12.337/1990 e 12.338/1990, e da Lei n. 8.666/1993 são ilegais, além de terem sido celebrados intuitu personae, ou seja, somente entre as partes.  

Veja que a decisão determinou a adoção de medidas para regularizar a situação jurídica formada. Não houve determinação para modificar a destinação das áreas, tampouco de retirar os produtores que as ocupavam licitamente.

Neste período já existia no mundo jurídico lei que possibilitava a venda direta dispensando a licitação, contudo, estava sub judice.

Durante o período também foi ajuizada outra ação de inconstitucionalidade, por erro formal, vício de iniciativa, dos decretos números 19.248/1998 e 22.436/2001 que regulamentava a concessão de uso de terras rurais no Distrito Federal e embasava a maioria dos Contratos de Arrendamento e suas renovações.

A referida ação foi declarada procedente para declarar inconstitucionais os referidos decretos, por erro formal, e, por consequência, declarou nulos os contratos de arrendamento embasados em tais decretos.

Ainda, durante este período, foi enviado à Câmara Legislativa do Distrito Federal o Projeto de Lei Complementar que dispunha sobre a revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal, no qual várias áreas rurais, objeto de contratos de arrendamento rural, ainda produtivas e não parceladas, foram destinadas para ocupação urbana com a criação de novos setores habitacionais.

Nenhuma destas decisões, muito embora publicadas no Diário Oficial, foram cientificadas aos produtores rurais diretamente afetados, que somente vieram a tomar conhecimento, em alguns casos, com a visita de Oficial de Justiça que os intimavam de decisão judicial, que determinava a desocupação do imóvel com base na declaração de ilegalidade/nulidade dos contratos, ou por meio de visita da Agência de Fiscalização - AGEFIS ou Secretaria de Estado da Ordem Pública e Social, que intimavam os produtores rurais a demolirem suas construções por estarem em desacordo com a legislação do Distrito Federal.

 É importante salientar que foi dado um prazo, em média, de quinze dias para que os produtores rurais demolissem suas edificações que levou décadas para serem construídas. Ressalte-se que são construções edificadas com autorização do Poder Público mediante aprovação do Plano de Utilização apresentado na Secretaria de Agricultura, conforme exigido.

Estas ações foram adotadas em total desobediência ao determinado na Lei nº. 2.689/2001, que permite a venda direta das áreas públicas rurais aos seus ocupantes, cuja constitucionalidade foi confirmada pela decisão do Supremo Tribunal Federal.

Vejamos a situação jurídica que envolve as áreas rurais do Distrito Federal.

No ano de 1996 restou promulgada a Lei Federal nº. 9.262, que autoriza a venda sem licitação das áreas públicas ocupadas, localizadas nos limites da Área de Proteção Ambiental – APA, da Bacia do Rio São Bartolomeu, que sofreram parcelamento reconhecido pela autoridade pública.

Contudo, o artigo 3º desta lei foi objeto de discussão quanto a sua constitucionalidade, em Ação Direta de Inconstitucionalidade  - ADI, tombada sob o nº. 2.990-8/DF proposta pelo Procurador–Geral da República, sob a alegação de que a lei estaria afrontando o princípio da obrigatoriedade de licitação pública com a consequente garantia de igualdade de condições entre os concorrentes, em total desobediência aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade.

Após forte discussão travada entre os ministros do Supremo Tribunal Federal restou decidido, por maioria, que a Lei em voga não fere o princípio de licitação, pois no caso concreto haveria a inviabilidade de competição, decorrendo a sua inexigibilidade.

Desta feita, restou permitida a venda diretamente àqueles que ocupam os imóveis públicos passíveis de se tornarem urbanos e que estão localizados na APA  da Bacia do Rio São Bartolomeu.

Nesta APA do Rio São Bartolomeu existem 199 condomínios, destes, 126 estão em área particular, 12 estão em áreas da União, e 25 condomínios estão sub judice a respeito da posse. Os demais 36 condomínios estão em área da Companhia Imobiliária de Brasília - TERRACAP, que deverá obedecer a Lei Federal, dispensar a licitação e vendê-las diretamente aos seus ocupantes.

No estudo dos votos dos eminentes Ministros observou-se a preocupação em relação à situação fática consolidada, qual seja, nessa área pública ocupada por centenas de pessoas, onde acaso não fosse permitida a venda direta dos imóveis a estas, teríamos um caos social.

Em viés bastante semelhante, e com abrangência maior de área que a lei federal anterior dispunha, restou editada e promulgada a lei distrital nº. 2.689/2001, tratando de alienação, legitimação de ocupação e concessão de direito real de uso das terras públicas rurais, pertencentes ao Distrito Federal e à Companhia Imobiliária de Brasília – TERRACAP.

A referida norma permite que aquele que ocupa a terra de modo legítimo, como arrendatário ou concessionário, e estiver nela produzindo possa comprá-la.

No entanto, como dito anteriormente, a referida norma também foi objeto de ADI, proposta pelo Partido dos Trabalhadores, que sustentaram que a Lei, ao autorizar a alienação sob a forma de venda direta aos seus ocupantes, afrontaria o princípio da impessoalidade. Acrescentou aos seus argumentos que “não pode o Distrito Federal, tal como é vedado às demais unidades federativas, editar normas de natureza geral, como o é, certamente, as modalidades de dispensa de licitação”.

No entanto, o Supremo Tribunal federal entendeu não haver afronta à Constituição Federal e declarou constitucional o texto legal que permite a venda direta dos imóveis rurais do Distrito Federal aos seus ocupantes.

Diante dos fatos narrados conclui-se que há anos temos legislação pertinente que permite a venda dos imóveis rurais diretamente aos seus ocupantes.

Questiona-se:

Conforme decisão do Tribunal de Contas do Distrito Federal – TCDF, os contratos anteriores foram declarados ilegais tendo com um dos fundamentos a necessidade de licitação para o ato. No entanto, a lei vigente à época (Lei Distrital nº. 2.689/2001- pois enquanto não declarada a inconstitucionalidade, a lei é considerada constitucional), dispensava a licitação para a venda, levando-se à conclusão que a disponibilização para o arrendamento ou a concessão de uso também seriam permitidos sem licitação (pois quem pode mais, pode o menos), e o instituto do arrendamento é menos valorado que o instituto da alienação.

Não obstante, outro fundamento utilizado para declarar ilegais os contratos de arrendamento foi o fato de que eles foram celebrados intuitu personae, ou seja, entre as partes.

Assim, como é possível que atualmente os novos Contratos de Concessão de Uso Oneroso de Imóvel Rural estejam sendo celebrados da mesma forma, contendo o mesmo erro?

Seriam eles objeto de nova decisão do TCDF (Tribunal de Contas) declarando-os ilegais novamente causando novo caos entre os produtores rurais?

Entendemos que a solução a ser dada para o caos jurídico que se instalou no Distrito Federal é a mesma solução dada na época das sesmarias, instituído pela Lei de Terras, qual seja, reconhecimento das ocupações existentes, ratificação formal das posses, e instituição da compra direta e imediata como a única forma para a regularização fundiária.

Ainda, com base no princípio constitucional da isonomia, e do direito à propriedade, TODAS as ocupações rurais que se deram por meio dos contratos de arrendamento devem ser integralmente respeitadas, não deixando margem para transformação de áreas rurais produtivas em áreas urbanas e destiná-las para setores habitacionais, pois se estaria usurpando direitos adquiridos e ferindo de morte o princípio da isonomia e da igualdade.

Não que se entenda que o direito à moradia é inferior ao direito de propriedade e consequentemente à alimentação; o que se entende é que são direitos com uma mesma valoração. Assim, um direito não pode ser sufragado para dar lugar a outro direito de igual valia. O direito de moradia e o direito a alimentação/propriedade caminham lado a lado e devem ser respeitados na mesma proporção.

Invoca-se, portanto, o princípio da isonomia no caso dos produtores rurais em relação às áreas integrantes da APA do Rio São Bartolomeu, que foram agraciadas com a possibilidade de compra direta, com dispensa da licitação. 

Compete ao Poder Público, com a participação da sociedade civil, encontrar a solução para o problema apresentado, o que não se tem visto acontecer, pois a atual política de regularização fundiária “descobre os pés para cobrir a cabeça” (afasta o produtor rural de sua terra e a entrega para outra pessoa), tendo como lucro a propaganda de habilitação de 100.000 famílias para os programas “Minha Casa Minha Vida” e “Morar Bem”.

Ressalte-se que “habilitação” é diferente de “aquisição”. As 100.000 famílias habilitadas estão aptas a receberem a moradia desejada, o que não quer dizer que foram disponibilizadas 100.000 moradias para este fim, e que aquelas receberam a unidades.

Assim como as 100.000 famílias estão habilitadas a receberem a casa própria, outras 100.000 famílias de produtores rurais estão habilitadas a manterem suas atividades agrícolas em suas áreas e lhe adquirirem a propriedade.

O que não se pode permitir é que os produtores rurais, já sacrificados por políticas agrícolas deficitárias, que destinaram uma vida inteira para tornar sua área produtiva e ali formar uma família, com a certeza de um dia adquirir a propriedade do respectivo imóvel, sejam vítimas do poderio político ambicioso alavancado por grandes empreiteiras que pleiteiam, acobertados pela supremacia do interesse público, para si os lucros de empreendimentos fabulosos em detrimento de vidas inteiramente dedicadas à preservação das características rurais de seus imóveis e do desenvolvimento de sua função social.

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