Causos de um advogado: o juiz, Shakespeare e a mulher preterida

18/09/2014. Enviado por

Fugir da frieza da lei, trazer aos autos o calor do sentimento humano e as contradições do próprio amor, citando a literatura clássica como base da fundamentação da alma, me fez pensar o quanto o direito deve ser mais humanizado e próximo da realidad

Sou um daqueles tantos advogados apaixonados pela profissão, pelo desejo de justiça e o resultado que esse ofício pode trazer para a sociedade. E olha que dizem que as paixões, diferente do amor, é mais intensa, e às vezes sem razão, mas isto é uma outra estória que poderemos esmiuçar depois. O fato é que numa dessas minhas lidas do dia-a-dia como advogado, fui contratado por um amigo para patrocinar a sua defesa e a defesa de um parente, em uma causa trabalhista, que confesso, não é muito do meu gosto, pois tenho serias convicções a respeito da flexibilização das relações de trabalho, ainda mais em cidades do interior onde a economia tem uma dinâmica diferente.

Chegada a ora da consulta o amigo discorreu todo o fato da causa, então entendi que na verdade se tratava de uma situação em que o primo do meu amigo mantinha uma relação afetiva com essa senhora, e após o término, ela não viu outra forma de prejudicá-lo senão ajuizando uma ação trabalhista no afã de se ver indenizada por todo o prazer e dedicação dispensada ao ex-afeto, que para constar, não tem um pau para dar no gato e nem o gato para apanhar (expressão cunhada pelo dito popular àqueles que são desprovidos de condições materiais), daí a inclusão desse meu amigo no polo passivo da demanda, haja vista que é um pequeno empresário, em ascensão.

Entendida a causa, pus-me a elaborar a defesa. Iniciei pela descaracterização da relação trabalhista sustentando-a em vasta doutrina e jurisprudência pátria. E como não poderia deixar de fazer, expus nas extensas linhas da minha contestação, a indignação com as inúmeras causas sabidamente infundadas pelos clientes (e às vezes por outros advogados menos comprometidos com a verdade) que abarrotam o Poder Judiciário, causando demora na prestação jurisdicional e na efetivação da justiça.

Destaquei casos de fraude à previdência social, na qual pessoas mal intencionadas utilizam-se do beneficio social destinado ao trabalhador rural para locupletarem-se indevidamente. Destaquei as inúmeras causas fraudadas de recebimento do seguro DPVAT que abarrotam o judiciário com ações em que, muitas das vezes, são infundadas, pois se forjam elementos falsos para que se tirem proveitos ilegais. E por fim, destaquei que naquela região, onde atuava essa especifica vara do trabalhado, advogados mal intencionados, induzidos por clientes, tanto quanto, mal intencionados também, utilizavam as ações trabalhistas como mecanismo de obtenção de vantagem indevida, apostando na desorganização do possível contratante, e na possibilidade de revelia, daí o porquê das iniciais com valores absurdos.

De certo, terminada a minha exposição, por ultimo, fundamentei o pedido de condenação da autora à litigância de má-fé, expondo ao juiz: “Não pode Excelência, como já citado alhures, a Reclamante utilizar-se da estrutura do Estado, movendo a máquina do Poder Judiciário para que dessa aufira vantagem não devida, tendo por escopo relação jurídica não existente, alterando a verdade dos fatos a fim de deduzir pretensão que sabia ser destituída de fundamento, violando os princípios de lealdade e boa-fé que devem reger o comportamento dos litigantes”. Terminada, era a hora de se protocolar no sistema virtual de processo e esperar a instrução para dias próximos.

Chegado o dia da instrução. Testemunhas de defesa devidamente apresentadas, em número de três, e uma testemunha da autora. Colhidos os depoimentos e feitas as considerações finais, conclui que seriamos vencedores, e mais, tinha a certeza de que o nobre julgador estava convencido do meu pedido pela condenação em litigância de má-fé, haja vista que tinha sido criterioso em destacar os fatos que caracterizariam esse fenômeno, sustentando-os em vasta jurisprudência.

O magistrado, após sessões de risos, por tantas contradições constatadas em audiência, dirigiu-se às partes e seus defensores e anunciou que publicaria a sentença na sexta-feira subsequente, o que poderia ser acompanhado pelo sistema virtual.

Chegado o dia, devidamente comunicado pelo diário oficial, fui verificar a sentença do magistrado. Ao iniciar a leitura logo vi que a minha tese, corroborada pelos depoimentos, fora vencedora.

Não havia ali, uma relação trabalhista, mas uma relação amorosa não prospera, que o juiz sucintamente abordou ao destacar que “... o pano de fundo da ação tem como leitmotiv uma relação afetiva fracassada”.

Mas espera ai, pensei. E o pedido de litigância de má-fé?. Ora, estava mais à frente, e logo vi que o magistrado não se esquivou de apreciá-lo, o que me pouparia o trabalho de formular embargos de declaração, afinal, ainda trazia no peito o desejo de que uma condenação por litigância de má-fé disciplinaria o acesso criterioso à justiça, desencorajando casos semelhantes.

Pela litigância de má-fé o magistrado se manifestou discorrendo queSe é certo o adágio de que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, justamente por essa razão não há que se ter, em relação à autora, o rigor inquebrantável de apená-la com a litigância de má-fé. Há que se compreender seus eventuais motivos, afinal, como disse Shakespeare, “os infernos desconhecem a fúria de uma mulher preterida”.

Fugir da frieza da lei, trazer aos autos o calor do sentimento humano e as contradições do próprio amor, citando a literatura clássica como base da fundamentação da alma, me fez pensar o quanto o direito deve ser mais humanizado e próximo da realidade das pessoas. Não mais pensei na condenação por litigância de má-fé (para esse caso, em especifico), ante à sensibilidade que me foi despertada, afinal, nem só de pão vive o homem, e na falta desse, há a fome, nesse caso, a fome da alma.

Homem com fome desperta os mais primitivos instintos de saciedade. Talvez esteja ai a explicação para a fúria da mulher preterida, citado por Shakespeare, e fundamentado pelo juiz.

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