Boa-fé nas relações de consumo

26/07/2012. Enviado por

Breves comentários sobre a Cláusula Geral da Boa-Fé nas Relações de Consumo

O princípio da boa fé se traduz no interesse social da segurança das relações jurídicas onde as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas.

Em sentido amplo a boa fé é o conceito essencialmente ético definido pela consciência de não prejudicar outrém em seus direitos, já em sentido estrito, é a mesma consciência de não lesar outrém com base no erro ou ignorância.

O princípio da boa-fé está positivado nos artigos 4º, inciso III e 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor e que cria três deveres principais:

- a lealdade;

- a colaboração, que é basicamente o bem de informar o “candidato” a contratante sobre o conteúdo do contrato;

- e o de não abusar, ou até mesmo, de preocupar-se com a outra parte (dever de proteção).

Como bem preleciona Clóvis V. do Couto e Silva: "Os deveres resultantes do princípio da boa fé são denominados de deveres secundários, anexos ou instrumentais (...). A boa-fé dá o critério para a valoração judicial, não a solução prévia. Num sistema jurídico sem lacunas, a função do juiz resume-se em elaborar mecanicamente as soluções, esvaziando-se o direito de conteúdo vital. Num sistema jurídico concebido, não como uma Geschlossenheit, como um mundo fechado, mas sim como algo com aberturas por onde penetram os princípios gerais que o vivificam, não se poderá chegar a uma solução concreta apenas por processo dedutivo ou lógico matemático. Com a aplicação do princípio da boa fé, outros princípios havidos como absolutos serão relativizados, flexibilizados, no contato com a regra ética”.

Em sede de direito de relações de consumo, a boa-fé não se esgota em tais definições, vindo ainda esculpida em forma de Cláusula Geral de Boa-Fé, esta estabelecida no artigo 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor, como a condição regedora de um contrato que pode inquinar sua invalidação uma vez desrespeitada.

Caracteriza-se pois, na obediência às regras de conduta que devem ter as partes contratantes, segundo os padrões exigíveis de crença objetiva de comportamentos idealizados.

Rui Rosado de Aguiar Júnior, eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça, a propósito da aplicação da cláusula geral da boa-fé, pontifica que as pessoas devem comportar-se segundo a boa-fé, antes e durante o desenvolvimento das relações contratuais. Esse dever, para ele, projeta-se na direção em que se diversificam todas as relações jurídicas: direitos e deveres. Os direitos devem exercitar-se de boa-fé; as obrigações têm de cumprir-se de boa-fé.

Como bem Nelson Nery Junior em Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, 5ª Ed., FORENSE UNIVERSITÁRIA, Pág. 410/411 ensina:

"O Código adotou, implicitamente, a cláusula geral de boa-fé, que deve reputar-se inserida e existente em todas as relações jurídicas de consumo, ainda que não inscrita expressamente no instrumento contratual. O princípio é praticamente universal e consta dos mais importantes sistemas legislativos ocidentais, em leis e normas de proteção do consumidor. É o caso, por exemplo, do § 9º da AGB-Gesetz alemã, já referida; do art. 16 do Decreto-Lei português nº 446/85;do art. 10, 1, c, da lei espanhola de proteção ao consumidor (Ley nº 20/1984, de 19 de julho).
Cumpre ao magistrado pesquisar se as partes agiram com boa-fé para conclusão do negócio jurídico de consumo, a fim de verificar se a cláusula sob exame é ou não válida à luz do preceito legal sob comentário.
A utilização da equidade, como técnica de julgamento no processo civil, é circunscrita nos casos autorizados por lei, segundo dispõe o art. 127 do CPC. A norma aqui analisada dá ao juiz a possibilidade de valoração da cláusula contratual, a fim de verificar se é ou não contrária à equidade e boa-fé. O juiz não julgará por equidade, mas dirá o que está de acordo com a equidade do contrato sob seu exame
.” 

Em função disto cabe se esclarecer que a boa-fé poderá ser subjetiva e boa-fé objetiva.

Boa-fé subjetiva é a falsa convicção acerca de uma situação pela qual o detentor do direito acredita na sua legitimidade porque desconhece a verdadeira situação.

É portanto a crença interna de confiança, ou seja, em seu íntimo os sujeitos de uma relação jurídica devem pretender agir lealmente, sem visar prejudicar a outra parte. Tem profunda relação com a própria motivação da conduta sob a presunção de que o sujeito ignora o vício ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa, como no Direito das Coisas.

Nela há uma convicção da legalidade ou validade do ato que se pratica, levando a pessoa a crer ser titular de um direito que somente existe na aparência.

Como é conhecido, nosso Código Civil tutela a aparência em diversos momentos, para lhe dar validade e produzir efeitos jurídicos. Mesmo presente o erro do que crê na aparência, o ordenamento, atendendo à conveniência de imprimir segurança e celeridade ao comércio jurídico e à necessidade de dispensar proteção aos interesses legítimos, reconhece como válidos os atos desse modo praticados e efeitos jurídicos lhes atribui.

O erro, destarte, é eliminado por força de lei e a vontade de quem assim errou é preservada, não mediante a anulação do ato como sucede com os casos comuns do erro-vício, mas mediante o reconhecimento da eficácia das declarações que do mesmo ato formam o conteúdo.

Mas a proteção da boa-fé não deve ser confundida com a tutela da aparência, pois, embora para essa última seja invocada a boa-fé, ela exige, além dela, outros requisitos, vejamos:

  • a) uma situação de fato induzidora do erro;
  • b) que o erro seja escusável;
  • c) que o direito ou o que se apresenta como seu titular pareça verdadeiro;
  • d) que a situação de fato corresponda a uma normalidade aparente ou ao trato habitual dos negócios;
  • e) que o verdadeiro titular do direito, por culpa ou dolo, tenha descuidado da conservação de seu direito, bem como, não tenha alertado suficientemente a terceiros sobre a verdadeira situação, possibilitando assim o erro de quem acreditou na aparência;
  • f) que seja uma demonstração da real necessidade de se proteger a segurança dos atos jurídicos, da eqüidade e da fé pública.

Debate-se seja a boa-fé subjetiva um estado psicológico ou um estado ético, predominando o entendimento de que trata-se do segundo.

No estado psicológico de boa-fé, alguém ignora a real situação que tem diante de si. Basta que a ignorância, para tanto, seja desculpável.

No estado ético de boa-fé por sua vez, alguém tem a convicção de que pratica um ato legítimo e acredita sinceramente que ele não acarreta prejuízo a outrem. Mas erra a respeito disso, devendo seu erro ser, no mínimo, desculpável. Impõe-se uma valoração moral da conduta social do indivíduo no qual se presume a boa-fé.

Para dela beneficiar-se, deve ter agido com diligência e cautela. A verificação da boa-fé, nesse caso, tem por parâmetro o cuidado que o comum das pessoas tem no trato dos negócios, salvo quando tratar-se de um especialista, que nesse caso terá por parâmetro o comportamento comum de um outro especialista.

Dessa forma, ainda que o erro ou a ignorância seja meramente culposa, ter-se-á pela má-fé.

Já a Boa-Fé Objetiva, também denominada boa-fé lealdade, apresenta-se como definidora de regras de conduta.

Em nome da estabilidade e da segurança dos negócios jurídicos, bem como, para a tutela das legítimas expectativas daqueles que contraem direitos e obrigações, a boa-fé objetiva impõe comportamentos socialmente recomendados: fidelidade, honestidade, lealdade, cuidado, cooperação, etc.

Tutela-se, portanto, aqueles que numa relação jurídica acreditam que a outra parte procederá conforme os padrões de conduta exigíveis.

A boa-fé objetiva diz respeito à regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Essa regra de conduta recai no comportamento de uma parte em relação a outra. É sinônimo de confiança.

As partes devem agir na exata medida do comportamento esperado. É relação reflexiva entre as partes conforme podemos observar a partir dos artigos que a contemplam.

É portanto, a clara e coerente interpretação dos contratos que  ocasione a honradez das obrigações, a honradez objetiva, a lealdade, honestidade ou probidade.

Pode ser considerada um princípio geral de direito, não expresso no Código Civil, mas incorporado ao direito brasileiro como um todo, por força do artigo 4º da Lei de Introdução do Código Civil e ao Direito do Consumidor, pelo artigo 4º, inciso III, do respectivo Código.

Segundo a consumerista Cláudia Lima Marques, o Código de Defesa do Consumidor impõe, para as relações de consumo, um patamar mínimo de boa-fé objetiva.

Boa-fé significa um nível mínimo e objetivo de cuidados, de respeito e de tratamento leal com o consumidor e seus dependentes. Tal patamar de lealdade, cooperação, informação e cuidados com o patrimônio e a pessoa do consumidor é imposto por norma legal, tendo em vista a aversão do direito aos abusos praticados pelo contratante mais forte, o fornecedor, com base na liberdade contratual, assegurada pelo princípio da autonomia privada.

A lei presume ser o consumidor a parte mais fraca na relação contratual (CDC, art. 4º, I) e, em decorrência, impõe aos fornecedores uma conduta conforme a boa-fé. 

Ida Regina Pereira Leite

Advogada em São Paulo. Pós-graduada em Direito de Relações de Consumo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, Direito Tributário pela Associação Paulista de Estudos Tributários, Direito Civil pela Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil e Juíza Arbitral da Câmara de Comércio do Mercosul

Assuntos: Consumidor, Direito do consumidor, Direito processual civil

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