A influência do movimento da lei e da ordem no processo político criminal pátrio

23/01/2014. Enviado por

O tema ao qual este artigo trata é a influência do movimento da lei da ordem, surgido nos Estados Unidos da América do Norte e na Europa na década de 1970, perdurando até meados da década subsequente.

RESUMO: O tema ao qual este artigo trata é a influência do MOVIMENTO DA LEI E DA ORDEM, surgido nos Estados Unidos da América do Norte e na Europa na década de 1970, perdurando até meados da década subsequente, em nossos parlamentares na elaboração de diplomas legais mais rígidos, aviltando, sobremaneira, direitos e garantias fundamentais – sendo o exemplo mais notório a Lei n. º 8.072/90, que trata a respeito dos Crimes Hediondos e Equiparados, editada para regulamentar o inciso XLIII, do art. 5. º da Lex Fundamentalis, inserto entre o rol de direitos e garantias fundamentais, mas que nada disso disciplina. Ao contrário, o seu enunciado evidencia que o escopo de tal dispositivo é suprimir direitos aos agentes que pratiquem as condutas nele elencadas. Os defensores do movimento em questão propugnam que o problema da criminalidade resolver‑se‑ia, simplesmente, com a relativização desses direitos e garantias anteriormente assegurados, quando se verificasse circunstâncias mais graves em seu cometimento. Em um primeiro momento, torna‑se muito convincente; entretanto, ao ser analisado com mais acuidade, observa‑se que ele é falso. Não se pode negar que, apesar de possuir uma fundamentação teórica incipiente, mesmo assim é capaz de convencer a população que, sentindo‑se potencialmente ameaçada, clama para se tome alguma providência, nem que seja para obter uma satisfação imediata e o aparente espectro de tranquilidade.

 

Palavras‑chave: Criminalidade; Movimento da Lei e da Ordem; Lei dos Crimes Hediondos.

 

Introdução

Neste artigo abordaremos o processo político‑criminal baseado na ideologia difundida pelo MOVIMENTO DA LEI E DA ORDEM, surgido nos Estados Unidos da América do Norte e na Europa em idos a década de 1970 e que perdurou até meados da década subsequente, o qual propugnava que a criminalidade acabaria – ou, ao menos se reduziria – se o exercício do Direito Penal se fizesse mais presente. Para atingir seu escopo, a política utilizada foi a de restrição de direitos e garantias fundamentais.

Exemplo disso vê‑se condensado na lei n. º 8.072/90, que regulamentou o inciso XLIII da Lex Fundamentalis vigente, referindo‑se aos crimes Hediondos e Equiparados. Contudo, antes de enfocarmos os resultados, devemos analisar suas causas genéricas.

1 razões para a edição da lei dos crimes hediondos e equiparados

Segundo João Marcelo Araújo:

Os defensores do Movimento de Lei e Ordem alegam que os espetaculares atentados terroristas ou o gangsterismo e a violência urbana só podem ser controlados com leis severas, que imponham a pena de morte e longas penas privativas de liberdade. Esses seriam os únicos remédios eficazes para intimidar e neutralizar os delinqüentes [sic] e, ademais, os únicos válidos para fazer justiça às vítimas e aos homens de bem [sic] ou seja, aos que não delinqüem [sic] (Apud FRANCO, 2000, p. 78). [grifo do autor]

Com base nos estudos realizados, percebe‑se que tal intento nunca se concretizará, haja vista a existência de cifra oculta (ALAGIA, 2003. 44; BATISTA, 1996, p. 21) [1].

Sobre essa questão, o Prof. Nilo Batista faz os seguintes apontamentos: “[…] embora o direito penal seja modelado pela sociedade –– e, em última instância, hão de prevalecer as variáveis econômicas que determinam suas linhas fundamentais –– ele também interage com essa mesma sociedade” (1996, p. 22).

Hans Kelsen propugna que a sanção deve ser aplicada obedecendo‑se aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Só assim, obstar‑se-á o cometimento de arbitrariedades, que ameacem a segurança jurídica e suscitem dúvidas a respeito da legitimidade de sua conduta. Di‑lo:

Quando a ordem jurídica determina os pressupostos sob os quais a coação, com força física deve ser exercida, e os indivíduos pelos quais deve ser exercida, protege os indivíduos que lhe estão submetidos contra o emprego da força por parte de outros indivíduos (2000, p. 40‑41).

Definitivamente, tais princípios são flagrantemente olvidados e violados pelos defensores do Movimento da Lei e da Ordem.

Coadunando ao que já fora exposto, afirmamos que a solução para o controle da criminalidade situa‑se em outras frentes, mas não no Direito Penal, porque não alcançará o objetivo almejado, até porque é falso.

Isto decorre da ocasionalidade das leis e da absoluta impossibilidade de apenar todas as pessoas que praticam delitos (nós); ou, melhor, pela ausência de interesse em fazê‑lo.

Winfried Hassemer refere‑se a um dado interessante sobre a real situação da criminalidade, verbis:

Nunca como hoje, se teve a oportunidade de perceber a violência e o exercício dela. Uma sociedade que, de um lado, dispõe de poderosos meios de comunicação e, por outro, está vivamente interessada, enquanto valora esses meios, na comunicação do fenômeno da violência, não necessita experimentar a violência em seu próprio seio, para percebê-la em toda sua omnipresença [sic] basta apenas contemplar o exercício da violência no mundo que nos rodeia (Apud FRANCO, 2000, p. 78).

Segundo Alberto Silva Franco, o Movimento da Lei e da Ordem tem como finalidades precípuas: “[…] dar tranqüilidade [sic], ainda que aparente, ao cidadão, apaziguar a opinião pública exaltada, exercer uma função puramente simbólica” (2000, p. 83). Contudo, afirma que são premissas falsas, por não ser mais possível estabelecer distinções qualitativas e quantitativas a respeito do sujeito sobre quem recairá a aplicação da norma; em suma, estigmatizando‑o (2000, p. 83‑84).

Sem dúvida este Movimento influenciou de maneira notória os nossos parlamentares que, com o escopo de responder rapidamente ao questionamento popular a respeito de um aparente aumento da criminalidade no País, idealizaram a lei n. º 8.072/90, sem, contudo, acurar‑se de respeitar as garantias material e formalmente previstas em nossa Constituição. Desde a justificativa do projeto, que ficou a cargo do então Senador da República, Odacir Soares, percebe‑se esta influência: “[…] sendo esses crimes uma atividade das mais nefastas, que crescia dia a dia, deveria ser coibida em qualidade e quantidade” (Apud MONTEIRO, 2002, p. 6‑7). [grifo nosso]

Na passagem supracitada, pode‑se notar a presença marcante do paradigma etiológico, pois há aceitação e utilização acrítica do Direito Penal como marco definitório da criminalidade (ANDRADE, 1997, p. 98).

Alessandro Baratta retrata muito bem este quadro em que se encontra o Direito Penal e o paradigma etiológico, do qual convictamente os nossos legíferos – à mercê de concepções pessoais e, ainda submetidos ao ressoar das indignações e temores das classes sociais dominantes do País, utilizaram‑se para majorar e piorar a situação de autores de crimes hediondos e equiparados:

O pressuposto de que parte a Criminologia etiológica […] é de que existe um meio natural de comportamentos e indivíduos que possuem uma qualidade que os distingue de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos: Esse meio natural seria a criminalidade. Este modo de considerar a criminalidade está tão enraizado no senso comum que uma concepção que dele se afaste corre o risco de, a todo momento, passar por uma renúncia a combater situações e ações socialmente negativas (Apud ANDRADE, 1997, p. 199).

Vera Regina de Andrade traz‑nos uma conclusão muito oportuna a respeito de todo esse espectro apresentado:

Obviamente é um modelo consensual de sociedade que opera por detrás deste paradigma, segundo o qual não se problematiza Direito Penal – visto como expressão de interesse geral – mas os indivíduos, diferenciados, que o violam. A sociedade apresenta uma única e maniqueísta assimetria: a divisão entre o bem e o mal (2003, p. 38).

Eugénio Raúl Zaffaroni, analisando as criminalizações primária e secundária, enfoca a contradição existente posto que a primeira nunca galgará o seu objetivo – seja em toda a sua extensão, seja em sua parcela considerável – decorrendo naturalmente então, a sua seleção, que não mais representa do que parcela ínfima da última (ALAGIA et. al., 2003, p. 43‑44).

Por isso que Alberto Silva Franco nos diz que o Movimento da Lei e da Ordem se apoia em premissas falsas. A mensagem que nos transmite é a de que não podemos mais continuar a reproduzir a concepção do paradigma etiológico já apresentado, tendo em vista que viver em sociedade pressupõe a existência de conflitos; portanto, diz:

A rigidez conceitual caiu por terra; não é possível compreender a problemática criminal como uma simples equação conflitual sociedade‑deliqüente [sic], filhos de Caim contra filhos de Abel […] O crime caracteriza‑se, portanto, como um comportamento desviado, porém, normal, a outra face da lei, a sombra inevitável da convivência humana (2000, p. 84). [grifo do autor]

Para finalizar a questão, o autor em comento diz que a luta contra a criminalidade está fadada ao insucesso, devido eivar‑se de três características que, em seu nascedouro, maculam‑na: irracionalismo, passionalidade e unilateralidade (FRANCO, 2000, p. 86).

Pode‑se estabelecer um liame entre esta situação com a apresentada por Michel Foucault. Ao analisar o art. 3. º do código francês de 1791, em que o seu enunciado era: “[…] todo condenado à morte terá a cabeça decepada” (Apud 2000, p. 15), esse autor afirma que tal enunciado possuiria três significações:

[…] uma morte igual para todos ‘os delitos do mesmo gênero serão punidos pelo mesmo gênero de pena, quaisquer que sejam a classe ou a condição do culpado […] uma só morte por condenado, sem recorrer a esses suplícios longos e conseqüentemente [sic] cruéis’, como a que forca [sic] denunciada por Le Peletier; enfim, o castigo unicamente para o condenado, pois a decapitação, pena dos pobres, é a menos infamante para a família do criminoso (Apud, 2000, p. 15‑16). [grifo do autor]

Assim como na passagem supracitada, podemos perceber as características marcantes na Lei n. º 8.072/90, tendo em vista que – logicamente, com as devidas diferenciações cronológicas e espaciais – foram generalizadas situações antes tidas como pontuais e que por incomodar as classes dominantes – pois o Direito como um todo, em especial o Direito Penal, evidencia as relações de poder existentes e que o Movimento da Lei e da Ordem somente serviu como pretexto para que aquelas, por meio de apelos decorrentes de pessoas influentes em nossa estratificação social, utilizando como instrumento legitimador os nossos legíferos, propugnassem pela edição do mesmo em tempo recorde – óbvio, sem as devidas cautelas, imprescindíveis a um processo desta magnitude e importância.

Dede a Justificativa ao Projeto, que ficou a cargo do Senador Odacir Soares, é factível a percepção – mais tarde transformada em exagero jurídico‑legislativo – de que tal manobra resolveria o problema da criminalidade – o que apaziguaria os ânimos de suas potenciais vítimas que dantes não se viam ameaçadas (Apud MONTEIRO, 2002, p. 7).

O interessante é notar o quanto essa manifestação de poder é estigmatizante e seletiva, principalmente em relação à criminalização secundária, que, com o auxílio dos meio de comunicação de massa, acabam por ter como destinatários pessoas sem acesso a estes – e divulgam tais delitos como os únicos a serem cometidos e seus autores como os únicos delinquentes.

 

Conclusão

Como fora demonstrado, essa fórmula utilizada hodiernamente não se constitui em um privilégio nosso, pois mencionamos um exemplo, constante do texto de Michel Foucault, que remonta à Revolução Francesa. Todavia, podemos perceber que herdamo‑la e, especialmente com a conjuntura atual – em que vemos os noticiários sonoro‑televisivos tendo como notícias principais figuras elencadas por nossos legíferos à categoria de crimes – sendo alguns ainda erigidos à categoria especial de hediondos, conforme o meio de execução ou a intensidade da violência com que são cometidos, podemos construir a ideologia de que o combate à criminalidade se faz com a repressão do Estado mediante as agências do sistema penal.

Contudo, o problema é de cunho social; não adianta pensarmos que o Direito Penal solucionará a criminalidade se não somos capazes de tratar ou entender o outro (palavra que traz certo cunho estigmatizante e discriminatório) como seu semelhante. O que mais percebemos quando é cometido algum fato penalmente punível, é que se julga e se sentencia previamente o seu autor, além de assemelhar‑no a um bichano feroz e indomável; sobretudo – e aqui cremos que está a consequência mais importante – temos em nosso subconsciente e que é reproduzida pelos populares que não somos capazes de nos ver cometendo nenhum crime, quando em verdade, cometemo‑los, mas devido à ineficácia do sistema penal ou à conveniência – exteriorizada em não possuir meios suficientes para penalizar todos os potenciais ou criminosos materialmente, porém quase sempre, devido a fatores externos, sendo alguns em certa medida espúrios, a que se condicionam em determinadas circunstâncias as suas agências, e não carregamos o estereótipo penal – tornamo‑nos imunes as suas malhas.

 

Referências

ALAGIA, Alejandro et. al. Direito penal brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 2ed. Rio de Janeiro: Revan, v. 1, 2003.

ANDRADE, Vera Regina de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

–––––.Sistema penal x cidadania mínima. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1996.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 22ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8.072/90. 4ed. São Paulo: RT, 2000.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. 7ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


[1] Terminologia empregada pelo criminólogo argentino, Eugénio Raúl Zaffaroni, que a conceitua como sendo: “A disparidade entre a quantidade de conflitos criminalizados que realmente acontecem em uma sociedade e aquela parcela que chega ao conhecimento do sistema é tão grande e inevitável que seu escândalo não logra ocultar‑se na referência tecnicista a uma cifra oculta”. [grifo do autor] . Nilo Batista, mais objetivo, a ela assim faz referência: “[…] é a diferença entre a criminalidade aparente e a criminalidade real e a função desempenhada pelo direito de estruturar e garantir determinada ordem econômica e social, também designada de controle social”.

Assuntos: Condenação, Crimes Hediondos, Criminal, Direito Penal, Direito processual penal

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