A constitucionalização do Direito Civil: brevíssima introdução histórica

28/02/2014. Enviado por

Busca-se apresentar, brevemente, o fenômeno da Constitucionalização do Direito Civil, revelando a mudança de paradigma sofrido pelo Direito Privado Brasileiro. O rompimento dos ideais liberais e a ascensão dos valores sociais.

Ao longo dos séculos, durante um longo processo histórico-evolutivo, principalmente nos países de tradição romano-germânica, adeptos da civil law, o direito civil espelhou uma forma de privilegio normativo do indivíduo. Assim, associava-se à tutela absoluta da propriedade privada e da liberdade contratual, sem qualquer viabilidade de mitigação.

De tal forma, a diferença entre direito público e privado se apresentava de maneira bem acentuada, tanto que, para o professor Paulo Luiz Netto Lôbo, “nenhum ramo do direito era mais distante do direito constitucional do que ele. Em contraposição à constituição política, era cogitado como Constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação liberal”.

O Código Civil de 1916, nascido sob a égide do liberalismo econômico, buscava resguardar os direitos e liberdades individuais contra a intervenção estatal, plasmando um modelo estático do Direito Civil, adverso às mudanças sociais, políticas e econômicas, naturais ao longo do tempo. Nesse sentido, em seu perfil oitocentista, o direito civil compenetrava-se na proteção patrimonial, lastreado em pilares de um regime dedicado à aquisição de bens e a circulação de riquezas.

Não obstante, o Estado liberal, nas primeiras décadas do século XX, mostrava-se decadente. Foi neste interim que “a percepção de que o ordenamento jurídico deveria agir para atenuar desigualdades e libertar indivíduos de necessidades propiciou o surgimento do intervencionista Estado social, o welfare state” . O referido processo histórico ensejou na construção da codificação de 2002, que nasceu fincado em diretrizes fundamentais bem definidas, marcando a nova maneira de se pensar o Direito Civil, em especial, com a inserção de uma nova principiologia, baseada na eticidade, socialidade e operabilidade.

De forma breve, o princípio da eticidade está relacionado à valorização das condutas éticas, leais, de boa-fé. Exemplo disso é o abuso do direito previsto no art. 187 (cláusula geral de ilicitude), sendo uma das consequências do descumprimento da boa-fé objetiva no exercício de um direito subjetivo. Além disso, outro dispositivo que privilegia a eticidade é o art. 422, estabelecendo que a boa-fé deve ser observada em todas as fases do contrato, inclusive em sua execução.

Com o princípio da solidariedade, o Código Civil de 2002 buscou romper com aquele sistema individualista e patrimonialista que imperou durante décadas. O contrato passou ser norteado pela função social, não mais só pelos interesses das partes, mitigando sensivelmente o postulado da pacta sunt servanda. Por último, o princípio da operabilidade trouxe a ideia de efetividade, ou concretude do Direito Civil, adotando a concepção de sistema aberto, através, especialmente, das cláusulas gerais. Com efeito, é oportuno acrescentar queo constitucionalismo e a codificação (especialmente os códigos civis) são contemporâneos do advento do Estado liberal e da afirmação do individualismo jurídico. Cada um cumpriu seu papel: um, o de limitar profundamente o Estado e o poder político (Constituição), a outra, o de assegurar o mais amplo espaço de autonomia aos indivíduos, nomeadamente no campo econômico (codificação).

Desta feita, em apertada síntese, o Direito Civil oitocentista “tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuação dos sujeitos de direito (contratante, proprietário, marido e o testador) em todas as suas dimensões . Eis a filosofia do século XIX que marcou a elaboração do tecido normativo consubstanciado no código civil de 1916”. Esse arcabouço traçado pelo individualismo, contudo, repise-se, passou a ser redefinido gradualmente no início do século XX, na Europa, com o welfare state (Estado Social).

A ideologia social, traduzida em valores de justiça social ou distributiva, passou a dominar o cenário constitucional à época, chegando ao Brasil a partir da década de 30 através de variados fenômenos, tais como a intervenção estatal na economia e a limitação da autonomia da vontade. “Ao lado disso, intensifica-se o processo legislativo em matéria civil, quebrando o caráter fechado, monolítico, do Código Civil, com a formação de microssistemas jurídicos.” É o que a doutrina convencionou chamar de descodificação do direito civil, isto é, foram extraídas matérias do texto codificado passando a serem reguladas por diplomas legais específicos. O monopólio do Código Civil abriu espaço para uma “realidade fragmentada e pluralista, através de estatutos autônomos, situados hierarquicamente ao lado da codificação e não submissos a ela” .

Em decorrência dessa corrosão da codificação civilista ocorreu uma verdadeira migração dos princípios gerais e regras atinentes às instituições privadas para o Texto Constitucional. Assumiu a Carta Magna um verdadeiro papel reunificador do sistema, passando a demarcar os limites da autonomia privada, da propriedade, do controle de bens, da proteção dos núcleos familiares etc.

Nesse ensejo, o advento da Constituição da República de 1988 foi fundamental para o surgimento, no Brasil, do fenômeno conhecido como a Constitucionalização do Direito Civil, sujeitando às normas e institutos próprios do direito civil à legalidade constitucional. Como corolário lógico, a Codificação de 1916, em sua perspectiva patrimonialista e individualista, restou superada, abrindo espaço para um novo Código Civil, instituidor de referenciais mais próximos dos valores veiculados pela Constituição da República, prestigiando, em especial, os direitos e garantias fundamentais. Em outras palavras, experimentamos o pós-positivismo jurídico, exaltando a tábua axiológica da Constituição da República e o término do legalismo estrito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direito das Obrigações. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

______. Curso de Direito Civil: Contratos. 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2012. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do direito civil. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 36, n. 141, p. 99-109, jan./mar. 1999.

REALE, Miguel. Exposição de motivos do anteprojeto do Código Civil. In: NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

TEPEDINO, G. J. M. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In. Temas de direito civil. 3.ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 03-23 p.

Assuntos: Direito Administrativo, Direito Civil, Direito Constitucional, Direito processual civil

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